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Fogo no Borba Gato e o racismo do velho Estado brasileiro



“Bahia terra de coco e azeite de dendê

A água do coco é doce e eu também quero beber

Vamos cantar, balançar o catimbó

Vamos trazer Bolsonaro amarrado no cipó.”

Canção entoada por povos indígenas

em Minas Gerais em atos

contra a PL 490



Inicialmente saudamos e louvamos aos camaradas do coletivo Revolução Periférica pelo ato político manifestado na ação sobre a estátua do bandeirante Borba Gato.

Muitas foram as pessoas que se solidarizaram com o ato e se manifestaram publicamente favoráveis à destruição da estátua, todavia, nos deteremos sobre as críticas. Estes outros, conservadores da ordem, disseram que cuidava de uma “tentativa de reescrever a história”, de uma ameaça ao registro do passado, de vandalismo e terrorismo.


Primeiro, uma pergunta de ordem filosófica: a história está definitivamente escrita?

O idealismo estático pequeno-burguês – para não falarmos em obtusa ignorância – não considera a processualidade dos fenômenos: a todo momento estamos escrevendo e reescrevendo nossa história, conhecendo e nos aprofundado sobre os fatos, aprimorando os métodos de apreensão destes mesmos fatos, interpretando e reinterpretando o nosso passado em função das transformações políticas e econômicas, tecnológicas, e conforme, outrossim, as lutas de classe.


Então, de que se tratam as críticas?


Há uma preocupação com a História?

Um vereador reacionário escreveu em uma rede social que o ato era uma “tentativa canalha de reescrever a história com violência”[1] – muitos outros acompanharam esse “raciocínio”.


Chega ser patético criticar o uso de violência para defender um bandeirante... já que, no passado, foram eles quem, pelo uso da violência (física e sexual), perpetraram os mais vis atentados contra os povos indígenas que vivam nas terras do que viria a ser o Brasil.


Quando se fala em “História” se tem a impressão de que os fatos ali narrados são todos aqueles que efetivamente ocorreram em um determinado período, sem qualquer interpretação, feitos de forma desinteressada e imparcial. Todavia, isso não acontece, vez que os indivíduos que registram a história estão inseridos em relações sociais, em lutas de classe, e são estimulados a reinterpretar o passado por necessidades do presente.


A redação de uma versão oficial da história e sua imposição por meio da violência foi, senão, o que fora perpetrado pela Metrópole por meio dos colonizadores portugueses contra os povos originários e os escravos africanos.


Quando falamos em “versão oficial”, não falamos de conteúdo elaborado unilateralmente pelo Estado ou por uma mente individualmente, mas sim por toda a classe dos latifundiários escravistas e pelos seus intelectuais orgânicos, publicados e disseminados através das instituições de Estado, dos órgãos e institutos, das universidades e faculdades etc. A classe que dirige a economia, dirige o Estado e os seus aparelhos ideológicos. A versão da história, a história oficial, é um instrumento político de dominação ideológica.


A preocupação desses que criticam os atos políticos da Revolução Periférica não está, propriamente, com a História, mas sim com a versão da história e em que contexto se dá o ato. A branquitude, feudal e agrária, vê o Brasil como seu produto. “O Brasil foi descoberto pelo português, pelo europeu”. “O Brasil fora desbravado pelo português”.


A Colônia, o Império e a República são formas derivadas, historicamente, do Estado português, originadas com a invasão colonizadora em 1500. Até a “Independência”, a questão do “povo” que ocupava as terras do Brasil não fora determinante. Com a formação do Estado Nacional surgiu a demanda pela caracterização dos indivíduos que ocupavam aquelas terras. Durante o Império, os intelectuais orgânicos passam a conceber o indígena como parte constituinte do nosso povo – “O guarani” de José Alencar é publicado em 1857 e “Iracema” em 1865. Isto é, uma nova versão da história era editada para definição do “brasileiro”.

Já na República, encerrado formalmente o escravismo, o negro passa a integrar formalmente a sociedade brasileira como sujeito. O que importa uma nova reelaboração da versão oficial da história: agora o negro deve ser visto, formalmente, como parte do povo. Malgrado a Lei Áurea, as políticas de embranquecimento da sociedade continuaram como projeto étnico – uma das razões para os fluxos migratórios do final do século XIX e princípio do XX.

Com a modernização do Brasil, a concentração demográfica, o aumento dos centros urbanos e das relações econômicas entre os indivíduos, o primeiro quartel do século XX é marcado pelas tensões acerca da questão racial. A “mistura de raças” é apresentada, também pelos intelectuais da classe semifeudal, com um problema biológico, social e moral. Esse assunto, dentre outros de natureza sanitária, higienista, educativa, são discutidos nos círculos eugênicos. Em 1918 é fundada a Sociedade Eugênica de São Paulo.


Apesar da concepção moderna, de considerar todas as etnias (europeia, indígena e africana) iguais como sujeitos de direito, condição para o desenvolvimento de relações de assalariamento no Brasil, os intelectuais do latifúndio advogam a superioridade do branco. É o que podemos verificar no seguinte trecho de autoria de Oliveira Viana:


“Entre nós, por toda a área de dispersão do tipo vicentista, a seleção da classe superior se faz, para a nossa felicidade, num sentido ariano. São os melhores exemplares da raça lusa, da nobreza nacional e da massa mestiça, que entram na sua composição. Mesmo nas minas, são os emboabas que tomam a dianteira à plebe rural e ocupam o lugar, que a legislação da metrópole abre, de súbito, no seio da aristocracia paulista.

Esse caráter ariano da classe superior, tão valentemente preservado na sua pureza pelos nossos antepassados dos três primeiros séculos, salva-nos de uma regressão lamentável. Fazendo-se o centro de convergência dos elementos brancos, essa classe, representada principalmente pela nobreza territorial, se constitui entre nós no que poderíamos chamar o sensorium do espírito ariano, isto é, num órgão com a capacidade de refletir e assimilar, em nossa nacionalidade, a civilização ocidental e os seus altos ideais. O negro, o índio, os seus mestiços, esses não nos podiam, na generalidade dos seus elementos, dar uma mentalidade capaz de exercer essa função superior.” [2]


Em 1933, Gilberto Freyre publica “Casa Grande & Senzala”, influenciado pela antropologia norte-americana, e propõe uma revisão da questão étnica, defendendo a miscigenação e apresentando-a como uma constante na história do português. Gilberto Freyre propõe uma nova versão da história com o intuito de evidenciar a possibilidade da integração pacífica entre as etnias.

Essa nova versão oficial engendra, ainda que no campo dos efeitos, o chamado “mito da democracia racial”, onde se entenderia que os negros e indígenas teriam mobilidade suficiente para ascensão social.


A posição do negro, no atinente ao problema étnico, é similar à do indígena, ainda que específico por fatores históricos.


Apesar dessa tendência modernizante e burguesa, a branquitude, estribada no racismo, não perde sua primazia moral, posição essa mantida pelos aparelhos ideológicos do Estado e mediante a opressão das demais etnias. É evidente que a inferiorização de etnias é acompanhada do menoscabo às suas respectivas produções culturais. Em que pese a liberdade, formal, do negro e do indígena, o exercício da sua cultura era perseguido e reprimido institucionalmente pelo Estado.


É o que nos registra o samba de 1938 de Tio Helio e Nilton Campolino:


Delegado chico palha

Sem alma, sem coração

Não quer samba nem curimba

Na sua jurisdição


Ele não prendia

Só batia


Era um homem muito forte

Com um gênio violento

Acabava a festa a pau

Ainda quebrava os instrumentos


Ele não prendia

Só batia


Os malandros da portela

Da serrinha e da congonha

Pra ele eram vagabundos

E as mulheres sem-vergonhas


Ele não prendia

Só batia


A curimba ganhou terreiro

O samba ganhou escola

Ele expulso da polícia

Vivia pedindo esmola


É essencial termos em mente que as reedições sempre se deram quando de transformações socioeconômicas do Brasil – comandadas pelas classes dirigentes e nunca pelos oprimidos: rompimento com a metrópole, fim do escravismo, modernização e industrialização da economia nacional. Uma constante em todas as versões é a primazia do branco de origem europeia na condução da história.

Durante a ditadura fascista de 64, os movimentos negros e indígenas foram perseguidos por questionarem a versão oficial da história: o mito da democracia racial. Os movimentos negros se tornam alvo em razão da sua crescente mobilização e da influência de outros movimentos norte-americanos, como nos explica a deputada Andréia de Jesus no artigo “O que a ditadura militar no Brasil tem a ver com o racismo hoje?” publicado no Brasil de Fato/MG[3]:


“Nós já tínhamos as referências de Rosa Parks, Martin Luther King, Abdias do Nascimento, Malcolm X, dos Panteras Negras. Nós já estávamos discutindo o mito da democracia racial no Brasil. Essa era também uma das farsas da ditadura: pintar um país sem diferenças (e desigualdades) raciais.

Muitos integrantes do movimento negro à época sofreram perseguição psicológica, perderam seus empregos por estarem articulados na luta contra o racismo. O movimento negro, como em toda sua história, não compunha apenas a luta pela igualdade racial, mas atuava em toda a esquerda política organizada e suas pautas por liberdade e igualdade.”


O Estado fascista emite o documento “Informação 580/19/AC/78”, o qual é citado por Thula Rafaela de Oliveira Pires no artigo “Estruturas Intocadas: Racismo e Ditadura no Rio de Janeiro”[4]:


“Representativo do discurso oficial do regime sobre a questão racial é a Informação 437/74 da Divisão de Segurança e Informações do Ministério da Justiça 1 para ser difundido entre SNI/AC – RECISA – CENIMAR – CIE.:

Existe no BRASIL, já há alguns anos, embora com certa raridade, a intenção velada do movimento subversivo em suscitar o problema da discriminação racial, com o apoio dos órgãos de comunicação social. [...]

Pela análise realizada pelos Órgãos de Informações, em 1971, conclui-se que indivíduos inescrupulosos e ávidos, para aumentarem as vendas de seus jornais ou revistas, e outros, principalmente por estarem ligados ou viverem na subversão ou terrorismo, estavam constantemente difundindo boatos e notícias que exploravam o assunto, [...]

Nesses anos, a repercussão do assunto foi considerável, chegando a influir na moda com o aparecimento de um novo tipo de cabeleira, gestos típicos e dísticos alusivos em peças de roupas, visando a dar uma conotação de presença e fortalecimento da raça de cor negra. [...]

Nos Estados Unidos da América do Norte, a criação e atuação dos grupos e movimentos conhecidos por ‘PANTERAS NEGRAS’, ‘BLACK POWER’ e outros de menor expressão, tem extensões que extrapolam os problemas locais, repercutindo em vários outros países, assumindo formas de organizações internacionais, sempre seguindo as premissas do M. C. I. [Comunismo Internacional], em colimar o agravamento das tensões sociais, visando à destruição das sociedades ocidentais. [...]

O assunto se presta à ideia-força do movimento subversivo-terrorista, por ser sensível à nossa população e contrário à formação brasileira. É explosivo e aglutinador, capaz de gerar conflitos e antagonismos, colocando em risco a segurança nacional.

Essa perspectiva é detalhada em conjunto de documentos 2 produzidos pela Agência Central do Serviço Nacional de Informações, que compilava e enviava para a chefia do SNI (CH/SNI) relatos produzidos pelas agências regionais sobre o tema que eles nomearam como “Racismo Negro”. Em quase 400 páginas, é destacado o controle do regime sobre o que eles denominaram Associações Culturais destinadas a propagação da cultura negra no Brasil 3 e sobre o Movimento Soul.”


Aqui já é possível identificar o paralelismo entre o discurso reacionário e fascista dos militares de 64 com o discurso reacionário e fascista de Direita dos dias de hoje e, especificamente, de Jair Bolsonaro. Na fala do vice de Bolsonaro vemos a reprodução mais fiel do discurso militar acerca do racismo: “Para mim, no Brasil não existe racismo. Isso é uma coisa que querem importar aqui para o Brasil. Isso não existe aqui.”[5]


O incêndio à estátua do Borba Gato é expressão de um movimento muito maior que está desconstruindo o discurso oficial. É trazer à tona a histórica violência do branco contra o indígena e o negro, é desnudar o problema da hipotética “conciliação” entre as etnias formadoras do brasileiro – do suposto “equilíbrio de antagonismos”, como chamaria Gilberto Freyre.


No campo simbólico, a manutenção da estátua de Borba Gato, um assassino de indígenas, no espaço público, é expressão de que esses lugares não são tão públicos assim, mas sim próprios da branquitude. Portanto, incendiar a estátua do assassino Borba Gato é um ato simbólico de apropriação destes espaços.


Há uma preocupação com a cultura ou com o patrimônio?

Outras críticas, como destacara a mídia, reputaram os atos políticos como vandalismo ou terrorismo. [6]


O legalismo e a manutenção da ordem é uma posição conservadora. Se a organização socioeconômica da sociedade e sua correlação dimensão moral e simbólica oprimem uma parcela das etnias dessa coletividade, ainda que majoritária, o posicionamento conservador deve ser denunciado como reacionário, antissocial, racista e feudal.


A crítica da burguesia é sempre para defesa da branquitude, do status quo da sociedade racista.


Ao longo de toda a colonização, da invasão aos dias atuais, os povos originários são constantemente atacados em sua integridade física, em sua autonomia econômica e ou em sua produção cultural. Quer agressão histórica e cultural maior que a expulsão de povos inteiros de suas terras tradicionais?


O racismo desse legalismo fica claro quando não existe a mesma energia e denodo na defesa das terras indígenas ou quilombolas contra a ânsia dos grileiros e do agronegócio. Ou contra os assassinatos em massa de pretos nas favelas perpetrados pela polícia racista.


A pequena-burguesia brasileira, indignada, arriba o dedo contra o incêndio da estátua de Borba Gato, mas sequer se comove com a ação aculturadora do Estado brasileiro contra os povos indígenas e negros.

Enquanto o Brasil for comandado pelo agrarismo semifeudal, o passado bandeirante será defendido pelos latifundiários e pelos seus intelectuais orgânicos – e por setores da pequena burguesia, estranhamente conservadores, que são seduzidos pelo discurso legalista.


Defender a estátua de Borba Gato é uma atitude reacionária, que pode estar mascarada de defesa do patrimônio histórico ou de legalismo.


Pela destruição de todas as homenagens aos assassinos do povo brasileiro!

Pela eliminação dos resquícios do feudalismo no Brasil!

Pela união de todos os brasileiros contra o racismo, a xenofobia, o sexismo, o machismo, e todas as manifestações feudais ainda ocorrentes!

Pela defesa da cultura legitimamente popular!

[2] VIANA; José Francisco de Oliveira. Populações meridionais do Brasil. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2005. P. 179. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/sf000067.pdf

[5] Fonte: Matéria de 20.11.2020 – “'No Brasil, não existe racismo', diz Mourão sobre assassinato de homem negro em supermercado”. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/11/20/mourao-lamenta-assassinato-de-homem-negro-em-mercado-mas-diz-que-no-brasil-nao-existe-racismo.ghtml [6] Estátua do bandeirante Borba Gato é incendiada em São Paulo. Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/07/estatua-do-bandeirante-borba-gato-e-incendiada-em-sao-paulo.shtml

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