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Revolta de Corumbiara, grande marco da luta camponesa no Brasil


Recentemente, em 9 de agosto de 2020, comemorou-se o aniversário de 25 anos da Revolta de Corumbiara, um dos mais importantes marcos da luta agrária brasileira.

Temos muitas lições importantes a serem tiradas deste acontecimento, para além do dever de fazermos nossa homenagem, ainda que modesta, a todos os mártires camponeses e trabalhadores rurais que caíram em defesa da terra para quem nela trabalha, sob os tiros e coronhadas daqueles que, quase três décadas depois, seguem cumprindo o mesmo serviço sujo em prol da reação rural, para manter vivo o sistema podre do latifúndio arcaico, semifeudal.

O pano de fundo da Revolta de Corumbiara

Os anos 1980 e 1990 foram marcados por saltos muito importantes para os movimentos de massas do campesinato. Se antes os diversos estratos dos labutadores rurais lutavam cada qual conforme suas diferentes reivindicações, entre assalariados rurais, posseiros, arrendatários, meeiros, parceiros, pequenos e médios proprietários e demais, o ano de 1984 marcou a unificação de todos estes estratos em um único grande movimento popular, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), sob o lema único da reforma agrária e da “terra para quem nela trabalha”, tendo nas ocupações das grandes fazendas improdutivas sua marca registrada, seu grande método de luta, cujo marco mais expressivo pôde ser visto na ocupação da Fazenda Anonni, município de Nova Santa Rita, no norte do estado do Rio Grande do Sul, no ano de 1985.

Até então, cerca de 3 mil famílias camponesas (conhecidas localmente pelo termo de “colonos”) estavam agregadas a este latifúndio, pagando extorsivos arrendamentos ao seu proprietário ao tradicional estilo feudal. Com o passar do tempo, seu proprietário substituía seus métodos feudais de exploração por métodos capitalistas, adquirindo insumos, tratores e colheitadeiras sob o manto da chamada “Revolução Verde”, tornando supérfluas as pequenas produções e expulsando de suas terras as milhares de famílias que aí viviam. Graças a um grande trabalho de politização, mobilização e organização por parte do MST, cerca de 1,5 mil ocupariam o latifúndio e terminariam vitoriosas, com a Fazenda Anonni sendo retalhada em pequenas propriedades que foram entregues aos camponeses. O exemplo da luta dos lavradores da Fazenda Anonni animaria as massas rurais do restante do país, que se entregavam à ocupação de terras como grande forma de luta.

A violência reacionária praticada contra os colonos da Fazenda Anonni por parte do fazendeiro e seus puxa-sacos não foi um caso isolado. Em Santa Catarina, Paraná e no estado do Rio Grande do Sul, também se processou situação semelhante em muitos municípios, com latifundiários feudais se tornando pouco a pouco capitalistas agrários. Em diversos casos, nem mesmo isso se passava: as famílias camponesas eram expulsas das terras sem que fosse operada a passagem para a agricultura capitalista, com os latifundiários preferindo deixar suas terras improdutivas, especulando com elas com a expectativa de valorização futura, mantendo as condições semifeudais.

Nem sempre as coisas se passavam como na luta da Fazenda Anonni, cujo desfecho foi a vitória dos camponeses: era frequente que os pobres do campo terminassem simplesmente expulsos, humilhados, reduzidos a condições de fome e mendicância pelas estradas do Sul do país. Este período de grandes lutas camponesas não apenas no Sul, como no restante do país, foi também um de intenso êxodo rural.

As classes dominantes brasileiras fizeram de tudo para impedir que as massas camponesas empobrecidas seguissem o caminho da luta da Fazenda Anonni, empregando não apenas os métodos tradicionais de repressão, como também programas de falsas reformas agrárias. Valia tudo para que não surgisse no Brasil um “novo Sendero Luminoso”, como gostavam de falar os reacionários.

Diante deste pano de fundo, aparece Rondônia. Com uma reduzida população de então menos de meio milhão de habitantes, apenas no ano de 1981, de fato, Rondônia se tornaria um estado da República Federativa do Brasil, sendo desmembrado do estado do Mato Grosso. Ainda sob a perspectiva da “integração nacional” e de conformar “novas fronteiras agrícolas” (isto é, abrir novos espaços para a atuação especulativa dos latifúndios improdutivos), o Estado reacionário brasileiro de então promoveria em Rondônia diferentes “projetos de colonização”, atraindo para o estado centenas de milhares destas massas camponesas empobrecidas do Sul do país e de outras regiões com falsas promessas de acesso à terra, na velha perspectiva de unir “terras sem homens com homens sem terra”, como uma das formas de afastar do caminho da luta o campesinato pobre e o proletariado rural. [1]

Os chamados “projetos de colonização” possuíam contratos variados em termos de períodos, condições e demais, mas em sua substância, não se diferenciavam de outras experiências já estabelecidas em décadas passadas, por exemplo, no Centro-Oeste brasileiro, ou mesmo no Sul: aos camponeses cabia a tarefa de desbravar matas, cultivar lavouras e viver em um lote com sua família por certo período. Passado este período, o camponês tinha o direito de reivindicar junto ao INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) o título de posse da terra na qual vivia. Tal era a ideia fundamental por trás dos chamados “projetos de colonização”.

Como não poderia deixar de ser, as coisas não caminhavam de tal forma que levasse os lavradores à conquista efetiva da terra. Neste período (tal como atualmente), o estado de Rondônia estava sob a mira de abutres como fazendeiros, grileiros, grandes comerciantes e altos funcionários públicos que, em uma “santa aliança” com a polícia e a pistolagem, buscava usurpar as terras desmatadas pelos camponeses diante das possibilidades reais de valorizações futuras em razão da construção de estradas e novas cidades. Muitíssimas famílias camponesas gaúchas, catarinenses, paranaenses e de outros estados foram constrangidas a vender seus lotes por preços irrisórios devido às ameaças de pistoleiros, fazendeiros e outros maus elementos. Tal como ainda ocorre, era comum que fazendeiros soltassem suas cabeças de gado em roças como forma de ameaçar e constranger as famílias camponesas. Não raramente, tais processos de grilagem terminavam em mortes. Verificava-se um fenômeno de falsificação de títulos de propriedade, terras griladas indo parar em nome de prefeitos, vereadores, juízes, dentre outras bizarrices.

Neste contexto de exploração e opressão, estavam dadas as condições objetivas para que o exemplo de luta do restante do país se estendesse também para o estado de Rondônia.

Massacre, resistência e conquista da terra para quem trabalha nela

A magnitude da opressão e enganação praticadas pelos poderosos chegou a tal ponto que importantes setores do campesinato de Rondônia passaram a enxergar que não havia caminho pelo direito a existir que estivesse fora da luta pela terra. Foi assim que em meados do ano de 1995, no município de Corumbiara – RO, muitas famílias camponesas ocuparam a Fazenda Santa Elina e começaram a cultivar suas terras com gêneros de subsistência. Em pouco tempo, este latifúndio, conformado a partir da grilagem, já estava tomado por cerca de 600 famílias – entre 2,5 mil e 3,5 mil camponeses.

Esta grande ação mobilizadora de milhares de pessoas logo despertou o ódio dos grileiros, que responderam com uma série de investidas repressoras que reuniram não apenas seus pistoleiros como a Polícia Militar do estado de Rondônia. Nesta luta desigual de vida ou morte, opondo matadores treinados a pessoas comuns, estas resistiam como podiam, empregando suas foices, jogando pedras ou abrindo fogo com precárias espingardas de caça, executando dois policiais militares.

A investida repressora dos reacionários assumia contornos desumanos e animalescos. Às três horas da madrugada de 9 de agosto de 1995, um exército de trezentos policiais e pistoleiros invadiu o acampamento e conduziu ações de terrorismo contra a população. Espancamentos, torturas e estupros eram conduzidos a esmo pelas hordas. Em algumas destas torturas, os pistoleiros obrigavam os camponeses a comer restos de cérebro de seus próprios companheiros, mortos com tiros de fuzil na cabeça. Uma criança de apenas 7 anos de idade, Vanessa dos Santos Silva, foi assassinada com um tiro de fuzil. Circulou pelo mundo uma foto tirada horas depois do ocorrido, que mostrava um campo de concentração erguido pela Polícia Militar para humilhar e torturar trabalhadores comuns. Até hoje, é incalculável o número de vítimas: a despeito do número oficial constatar cerca de oito camponeses mortos pela reação, há cerca de vinte “desaparecidos” desde então. Mais de 350 camponeses foram gravemente feridos, com muitos sofrendo até hoje com as sequelas físicas e psicológicas das torturas, tiros e agressões. Muitíssimos morreram em virtude das mesmas sequelas. Cerca de duzentos trabalhadores foram arrastados à cadeia.

Tal banho de sangue gerou até mesmo a condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Diante de toda comoção gerada, não houve alternativa para a reação local que não fosse um recuo parcial, com a maior parte das terras da Fazenda Santa Elina sendo retalhadas e entregues aos camponeses, com a formação de diversos assentamentos que recebem o nome dos mártires da resistência de Corumbiara e de vários outros combatentes da luta pela terra que tombaram posteriormente sob as balas da classe latifundiária.

A luta pela dissolução completa da Fazenda Santa Elina prossegue até hoje, 25 anos depois da heroica resistência dos trabalhadores rurais: há alguns dias, em 16 de agosto, dezenas de famílias mobilizadas pela Liga dos Camponeses Pobres (LCP) ocupou o último reduto da Fazenda Santa Elina (conhecido como Fazenda Nossa Senhora), localizada no município de Chupinguaia – RO, reivindicando a entrega das terras para os camponeses e justiça para todos aqueles assassinados e humilhados. Mesmo após três décadas, os mandantes e os assassinos seguem completamente impunes, soltos para cometerem novamente suas ações animalescas.

Ademais, não há dúvidas que cedo ou tarde, os camponeses de Rondônia, que seguem explorados, deverão empreender uma resistência ainda mais combativa. Já há denúncias que, em 19 de agosto, policiais militares invadiram o local para intimidar os camponeses. Moradores das proximidades denunciam o disparo de tiros para o alto como mais formas de intimidação.

Formação da Liga dos Camponeses Pobres (LCP): grande legado da resistência de Corumbiara

A Revolta de Corumbiara foi responsável por forjar na luta um núcleo mais combativo e proletarizado do campesinato brasileiro, que anos depois se conformaria, ainda nos anos 1990, em um movimento de massas rural que atende pelo nome de Liga dos Camponeses Pobres (LCP). Desde então, a LCP tem conduzido em diversos estados do país a tarefa hercúlea de mobilizar, politizar e organizar o campesinato brasileiro para a conclusão da tarefa antifeudal da reforma agrária, mesmo sob as adversas condições de repressão, perseguição, assassinatos de dezenas de seus dirigentes e militantes, e ainda sob uma furiosa campanha dos órgãos de imprensa locais que atendem aos interesses de latifundiários.

Até os tempos atuais, organiza grupos expressivos de camponeses pobres e trabalhadores assalariados rurais que, não apenas em Rondônia, como em estados como Minas Gerais, Alagoas, Pernambuco, Pará e outros, tem cumprido um papel extremamente positivo em um momento tão dramático para os setores democráticos e progressistas de nosso país.

NOTAS

[1] Durante a década de 1980, entre as massas camponesas vítimas do êxodo rural do Sul, verificou-se também uma intensa migração para o Paraguai, em uma leva daqueles que ficaram conhecidos como “brasiguaios”.

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