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Marx, as mulheres e o suicídio


Consideremos um artigo de Karl Marx escrito em 1846 intitulado Sobre o Suicídio; esse pequeno texto formado, em grande parte, por excertos traduzidos para o alemão do capítulo Du Suicide et des sés causes das Memórias de Jacques Peuchet, um diretor dos Arquivos da Polícia Francesa durante o período da Restauração, retrata alguns dos casos de suicídio que ele registrou no período em que lá trabalhou. Marx, nessa escolha, faz um elogio à crítica francesa da sociedade, que tem nesse capítulo de Peuchet, ainda que não se trate de um socialista, um exemplo de como a crítica da vida privada feito pelos autores franceses conseguem identificar as contradições da sociabilidade burguesa em todos os seus níveis e não apenas nas relações específicas entre burguesia e proletariado. O ponto principal desta análise é a indicação de como e em que medida, o marxismo então compreendido na obra dos filósofos alemães Karl Marx e Friedrich Engels oferece elementos fundamentais para a discussão da questão do gênero na sociedade contemporânea. As correlações levam em consideração a análise materialista dialética sobre como foi construída a relação entre homem e mulher na história da humanidade e sobre os fundamentos da constituição do patriarcado e da família monogâmica, estes diretamente ligados com a propriedade privada.

O artigo parte de uma constatação: embora o suicídio tenha na miséria oriunda das crises de produção uma de suas causas principais, este ato extremo é também executado em todas as classes sociais, desde os ricos ociosos até artistas e políticos. A pluralidade de personagens, de múltiplos contextos e personalidades, que cometem suicídio demonstra que o problema não se reduz a causas puramente psicológicas e, portanto, deve ser compreendido a partir de causas sociais. Desta forma a filosofia, que sempre buscou explicar o fenômeno de forma ora menos, ora mais moralista, falha em sua tarefa e as “saídas” apresentadas, sejam religiosas, sejam niilistas, de nada modificam o cenário concreto da sociedade, que segue a contabilizar pessoas que encontram no suicídio um último recurso contra os males de sua vida privada; como o filósofo destaca no artigo, “o suicídio não é mais do que um entre os mil e um sintomas da luta social geral” (MARX, SOS 2006, p.29) e assim, a classificação das causas não é senão uma classificação dos males da sociedade burguesa moderna.

No desenvolvimento do seu ensaio, Marx demonstra que a sociedade burguesa, além da brutal exploração que condena a classe proletária a uma existência reificada, também gera vítimas não proletárias que, condenadas a uma existência inautêntica são levadas ao ato extremo de pôr fim a sua própria vida; e dentro dessa categoria, as mulheres ocupam papel central nesta crítica marxiana. Dos quatro casos selecionados no artigo, três envolvem suicídios de mulheres. Por isso o filósofo brasileiro Michael Löwy, em um artigo denominado Um Marx insólito, destaca que esse pequeno texto de juventude do filósofo alemão “é uma das mais poderosas peças de acusação à opressão contra as mulheres já publicada” (LÖWY, 2006, p.18).

O primeiro caso citado é a história de uma mulher, filha de alfaiates, que na véspera do seu casamento é convidada para um jantar oferecido pelos pais do seu noivo para celebrar a união. Por um imprevisto, os seus pais não puderam comparecer e ela foi sozinha à celebração. Naturalmente, ele passa a noite na casa do noivo, e na manhã seguinte quando retorna a sua casa é recebida por sua própria família com ofensas e acusações. Ao ser humilhada e difamada por seus pais e padrinhos, a moça foge e se suicida no rio Sena. Além da demonstração da falsa moral burguesa consagrada pelo patriarcado, Marx destaca neste caso a intolerância fruto da covardia dos pais e padrinhos, que imbuídos da autoridade de pessoas mais velhas julgam e agridem verbalmente a noiva; nesta história, o uso dessa autoridade é “uma compensação grosseira para o servilismo e a subordinação aos quais essas pessoas estão submetidas, de bom ou mal grado, na sociedade burguesa” (MARX, SOS 2006, p.32)

O segundo caso apresenta um caso de ciúmes que teve um desfecho trágico. Uma jovem mulher casou-se com um homem oriundo de uma das famílias mais ricas da Martinica e logo um ano após cometeu suicídio. A motivação foi revelada a Peuchet pelo irmão do viúvo, que denunciou a situação que levara a moça a tirar a própria vida. O marido, após contrair uma doença degenerativa e ver a imagem que todos faziam dele mudar, resolveu isolar-se em uma casa fora da cidade. Sua esposa foi forçada a seguir este caminho, viver enclausurada, sem nenhum convívio social, além de sofrer com as não raras crises de ciúmes e agressividade do esposo doente. Na falta de alternativa para sair daquela situação indigna, a jovem se suicidou como única alternativa de fuga. Como realça Marx, citando Peuchet, “a infeliz mulher fora condenada a mais insuportável escravidão, e o Sr. Von M... podia praticá-la apenas por estar amparado pelo Código Civil e pelo direito de propriedade” (MARX, SOS 2006, p.37), e mais que isso, tratava-se de uma situação social que legitimava esse tipo de relação infame e “autoriza o marido ciumento a andar por aí com sua mulher acorrentada como o avarento com seu cofre, pois ela representa apenas uma parte do seu inventário” (MARX, SOS 2006, p.37).

O terceiro caso descreve o relato feito a Peuchet por um médico que havia sido procurado por uma jovem mulher que pedia auxílio para realizar um aborto, uma vez que na situação que ela se encontrava, a descoberta da gravidez causaria escândalo na família do seu tutor. Estava disposta a, inclusive, se matar para evitar o problema, caso não conseguisse ajuda para o aborto. E foi isso que aconteceu 15 dias após o médico se negar auxílio a jovem para abortar. Em nome do moralismo vigente, aquele homem que lhe negou ajuda, percebeu que fosse outro tipo de situação análoga, como no caso de partos difíceis, ele decidiria arbitrariamente entre salvar o filho ou a mãe de acordo com a sua preferência, e que naquele caso, havia sido “cúmplice” de um assassinato.

A partir do ensaio Sobre o Suicídio pretendi demonstrar que a discussão sobre a questão de gênero está presente na obra de Karl Marx, em especial na sua obra de juventude.

Um dos exemplos que destaquei é a passagem do caderno Propriedade privada e Comunismo dos Manuscritos Econômico-filosóficos, datados de 1844, quando critica o comunismo grosseiro que retém a mulher sob o princípio da propriedade privada, que tenta negar o casamento com a oposição da comunidade de mulheres. Para Marx, nessa concepção está “expressa a degradação infinita na qual o ser humano existe para si mesmo, pois o segredo desta relação tem a sua expressão inequívoca, decisiva, evidente, desvendada, na relação do homem com a mulher e no modo como é apreendida a relação genérica imediata, natural” (MARX, MEF 2004, p.104). O filósofo destaca que a relação imediata do homem com o homem é a relação entre o homem e a mulher; é a partir desta relação, homem e mulher, natural e necessária, que se demonstra até que ponto o comportamento natural do ser humano se tornou humano, até que ponto sua natureza humana lhe é natural.

Esta passagem, fundamental para a concepção marxista do homem, remete a contraposição realizada por Marx e Engels, em sua primeira obra conjunta, A Sagrada Família, entre a Crítica crítica representada pelos hegelianos de esquerda Edgar Bauer e Bruno Bauer e a posição do socialista utópico francês Charles Fourier, quanto à opressão exercida pela sociedade burguesa sobre as mulheres. Os autores destacam uma passagem de Fourier, que corrobora com sua posição acerca da questão: “A mudança de uma época histórica pode ser sempre determinada pela atitude de progresso da mulher perante a liberdade, já que é aqui, na relação entre a mulher e o homem, entre o fraco e o forte, onde a vitória da natureza humana sobre a brutalidade, que ela aparece de modo evidente. O grau da emancipação feminina constitui a pauta natural da emancipação geral” (FOURIER apud MARX & ENGELS, SF 2003, p.219).

O segundo momento da obra marxista que destaquei como contribuição para a questão de gênero é o livro A origem da família, da propriedade privada e do Estado, escrito por Friedrich Engels, a partir de um manuscrito de Marx sobre o livro A sociedade antiga do antropólogo estadunidense Lewis H. Morgan. Neste amplo trabalho de reconstituição da formação histórica da civilização por intermédio do método de análise materialista, Engels identifica a passagem do comunismo primitivo, com a predominância do matriarcado, para os primórdios da sociedade moderna, com ascensão do patriarcado, fundamentado na propriedade privada, como um ponto chave para entender o papel destinado à mulher na nossa sociedade. Como aponta o autor, “O desmoronamento do direito materno foi a grande derrota histórica do sexo feminino em todo o mundo” (ENGELS, 2010, p.77). O homem se apropriou da direção da casa e destinou a mulher um papel de subordinação, como servidora doméstica e mero instrumento de procriação.

Engels atenta que “essa degradada condição da mulher, manifestada, sobretudo entre os gregos dos tempos heroicos e, ainda mais, entre os dos tempos clássicos, tem sido gradualmente retocada, dissimulada e, em certos lugares, até revestida de forma de maior suavidade, mas de maneira alguma suprimida” (ENGELS, 2010, p.77).

E neste sentido, a instituição do casamento monogâmico aparece na história como a consagração deste jugo masculino sob formas culturais, morais e jurídicas. Engels demonstra que “a monogamia não aparece na história, portanto, absolutamente, como uma reconciliação entre o homem e a mulher e, menos ainda, como a forma mais elevada de matrimônio. Ao contrário, ela surge sob a forma de escravização de um sexo pelo outro, como proclamação de um conflito entre os sexos, ignorado, até então, na pré-história” (ENGELS, 2010, p.87). O autor segue: “o primeiro antagonismo de classes que apareceu na história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre homem e mulher na monogamia; e a primeira opressão de classes, com a opressão do sexo feminino pelo masculino” (ENGELS, 2010, p.87).

Portanto, a intenção deste trabalho, longe de pretender ser minimamente exaustivo sobre a questão, foi delimitar a relevância da análise de Karl Marx e Friedrich Engels para se pensar a questão de gênero, a partir do artigo Sobre o Suicídio e alguns outros textos de juventude de Marx, e em especial, a contribuição da obra A origem da família, da propriedade privada e do Estado para a compreensão do papel histórico do patriarcado edificado sobre a propriedade privada, com a determinação da natureza da opressão sobre a mulher na sociedade burguesa. Eis a importância do pensamento marxista para a questão do gênero em nossa sociedade, não como análise inerte que se prende a referências ao século XIX e a antropologia nascente e com suas limitações históricas, mas como análise concreta de situações concretas, como dizia Lênin. Pensar o gênero a partir a totalidade, como a questão se desenvolve e se relaciona como o todo da sociedade contemporânea, tratar a questão sob o ponto de vista do materialismo histórico, considerar o problema sob todas as suas determinações é o caminho para não só interpretar a realidade, mas sim para transformá-la, como apontava Marx em sua 11ª tese sobre Feuerbach. Referências Bibliográficas ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. São Paulo: Expressão Popular, 2010. LÖWY, Michael. Um Marx insólito. in MARX, Karl. Sobre o suicídio. São Paulo: Boitempo Editorial, 2006. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A sagrada família ou A crítica da crítica contra Bruno Bauer e consortes. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003. MARX, Karl. Manuscritos Econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004. MARX, Karl. Sobre o suicídio. São Paulo: Boitempo Editorial, 2006.

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