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A ideologia da Vkhutemas na URSS



Este texto pretende ser uma pequena contribuição à popularização das Vkhutemas. No Brasil, dentro dos círculos sociais da pequena-burguesia, quando se fala em Design, uma das primeiras representações simbólicas que se tem é o prédio da escola alemã Bauhaus, em detrimento de outras instituições de “vanguarda” de igual importância, como as Vkhutemas, que brevemente apresentaremos neste texto - ou para darmos um exemplo brasileiro, guardadas as devidas proporções, poderíamos citar a UNILABOR, de Geraldo de Barros. Este fenômeno social acontece por razões que não cabe discutir neste texto, porém, é mister considerarmos que não se trata de mero esquecimento “natural”, mas de como o pensamento ocidental “apagou” as contribuições soviéticas à Ciência e à Arte.


Seguindo com a comparação, ao contrário da Bauhaus - apesar da escola alemã ter sido subsidiada pela República de Weimar - , a função político-social das Vkhutemas é completamente diferente da primeira: quando da fundação dos ateliês, o comando do Estado estava nas mãos das classes trabalhadores soviéticas desde a Revolução de Outubro; os ateliês soviéticos objetivam a superação da condição de objeto, na qual se encontravam os operários e camponeses, para a de sujeitos políticos; a instrução dos indivíduos visava, não só a qualificação de operários para cumprimento dos objetivos econômicos do Estado, senão a própria.


Dizer que as Vkhutemas foram, do ponto de vista da arte, um local de “experimentação técnico-artístico”, um ambiente “criação de conhecimentos estéticos”, ou, do ponto de vista institucional, o estabelecimento de uma complexa rede de ensino da arte, de criação de novos métodos etc., por sua vez, não seria errado, mas cuidaria de apresentá-las em abstrato. As Vkhutemas foram um instrumento político e econômico revolucionário, dirigido pelo Estado Soviético, com propósito de socializar os conhecimentos técnicos e estéticos, outrora restritos à aristocracia e à burguesia, entre operários e camponeses, dentro do projeto, a curto prazo, de modernização da Rússia feudal e, de longo prazo, de superação do Capitalismo pelo Comunismo. Não podemos dizer o mesmo da escola alemã criada sob os auspícios da social democrata República de Weimar - que, por seu turno, gestaria o Terceiro Reich.


A efetiva coletivização dos conhecimentos não se deu com o mero e formal franqueamento dos espaços de cultura ao povo, senão com medidas garantidoras para a sua plena realização. Considerando a desigualdade material, seja econômica ou cultural, existente entre classes sociais, medidas foram tomadas para possibilitar que os sujeitos tivessem condições de participar das atividades dos ateliês, como a criação das Rabfaks (Faculdades dos Trabalhadores) - escolas preparatórias, independentes das Vkhutemas, onde camponeses e operários maiores de 16 anos eram alfabetizados e recebiam subsídio para poder ingressar em instituições de ensino como a Universidade de Moscou, Instituto Comercial de Zamosvoriétski e as Vkhutemas; em 1930, cerca de 300 mil alunos dos ateliês eram egressos das Rabfaks.


O projeto de transformação social através da coletivização dos conhecimentos do design, da arquitetura, da pintura, da música, da fotografia etc. entre o campesinato e o proletariado é criado pelo Comissariado do Povo para a Educação, chefiado por Anatoli Lunatcharski e pela vice-comissária Nadiêdja Krúpskaia. Ao longo de sua existência, até sua extinção em 1930, o projeto passou por três fases: (i) em 1918, quando da sua criação, sob a sigla SVOMAS (Ateliês Livres de Arte), após a dissolução da Academia de Arte Industrial Strôganov e a Academia Imperial de Arte; (ii) em 1920, quando da reorganização, os ateliês foram consolidados como instituição educacional de nível superior e passaram a se chamar VKHUTEMAS (Ateliês Superiores de Arte e Técnica); (iii) em 1927, quando da última reforma, os ateliês passam a ter viés eminentemente técnico e a se chamar VKHUTEIN (Instituto Superior de Arte e Técnica).


Assim, portanto, as Vkhutemas, necessariamente, devem ser compreendidas como instrumento, como meio, socialista de transformação social e não como um fim em si mesmo - uma “escola de arte livre”, aos moldes burgueses. A pequena burguesia do mundo se impressionou e se impressiona com a produção dos artistas soviéticos, pois tomam sua criação em abstrato, desconsiderando o caráter de classe das obras e dos próprios agentes. Essa é, também, a razão da denúncia pequeno-burguesa de “interferência” do Estado Soviético e da lamentação pelo encerramento das Vkhutemas. Voltaremos a este ponto posteriormente.



Os Svomas compreendiam os seguintes ateliês: de (i) Arquitetura, com cadeiras de Matemática, Mecânica, Tecnologias de Materiais, Análises de Construções Arquitetônicas da Antiguidade, Arquitetura Contemporânea e Técnicas de Construções da Indústria Moderna; (ii) de Pintura, focado nos estudos de Colorimetria e Materiais; e (iii) de Escultura, onde se estudava as matérias de Laboratório de Estudo e Trabalho sobre Materiais Duros, Bases da Mecânica, Formas Espaciais, História da Construção Escultórica na Antiguidade e História da Construção Escultórica Contemporânea. Tanto as Vkhutemas quanto as Vkhutein abrangiam a (i) Faculdade de Arquitetura, (ii) Faculdade de Trabalho em Madeira e Metal, (iii) Faculdade de Cerâmica, (iv) Faculdade Têxtil, (v) Faculdade Poligráfica, (vi) Faculdade de Pintura e (vii) Faculdade de Escultura. Os alunos debruçavam-se sobre matérias úteis ao desenvolvimento de novas tecnologias para a modernização e maximização da produção econômica soviética.


Apesar desta direção política das Vkhutemas na edificação da sociedade socialista, a ideologia pequeno-burguesa da intelectualidade soviética manifesta-se concretamente na condução das faculdades. A organização tanto dos cursos quanto do conteúdo das Vkhutemas possuiu em seu seio valores da chamada arte de vanguarda, caracterizada pela dissolução da tradição da linguagem artística e por experimentalismo por “novas linguagens”. O espírito experimental das Vkhutemas teve dois lados: de um lado, a busca de uma linguagem artística nova que representasse o socialismo nascente, do outro, a fundamentação dessa busca nas experimentações da arte de vanguarda. No entanto, conforme ficou demonstrado nos debates estéticos dos anos 30 na União Soviética, o experimentalismo de tipo da arte de vanguarda é um representante das ideologias burguesa e pequeno-burguesa, classes ainda existentes na sociedade soviética do período.


Um dos aspectos principais dessas ideologias é o individualismo. No caso da estética, ou seja, nos princípios filosóficos da arte burguesa, o individualismo é o elemento fundamental. Ali, a imagem do artista como personificação da criatividade individual é seu ponto de partida, mesmo que na prática isso se manifeste apenas indiretamente. Vejamos como Marx caracteriza isso, quando comenta as chamadas robinsonadas (histórias do tipo Robinson Crusoé), que começaram a surgir já no século XVIII:


Nessa sociedade da livre-concorrência, o indivíduo aparece desprendido dos laços naturais que, em épocas históricas remotas, fizeram dele um acessório de um conglomerado humano limitado e determinado. Os profetas do século XVIII, sobre cujos ombros se apoiam inteiramente Smith e Ricardo, imaginam esse indivíduo do século XVIII — produto, por um lado, da decomposição das formas feudais de sociedade e, por outro, das novas forças de produção que se desenvolvem a partir do século XVI — como um ideal, que teria existido no passado. Vêem-no não como um resultado histórico, mas como ponto de partida da História, porque o consideravam um indivíduo conforme à natureza — dentro da representação que tinham da natureza humana —, que não se originou historicamente, mas foi posto como tal pela natureza. Essa ilusão tem sido partilhada por todas as novas épocas, até o presente (Marx 1999, pp. 25-26).


Assim como a burguesia imaginou que o indivíduo desprendido de seus laços naturais (e sociais) seria o ponto de partida da história (e não, ao contrário, o resultado de um processo histórico), a estética burguesa imagina um artista que inventa, a partir de sua criatividade individual, os valores estéticos de cada época. Em sua versão mais refinada, imagina uma linguagem artística que se desenvolve autonomamente, e cujo valor estético está em sua especulação e "evolução" ensimesmada, independente da realidade que de fato a determina. Essa é a chamada estética da arte pela arte.


No século XX a tendência da arte pela arte foi levada a suas últimas consequências com a chamada arte de vanguarda. Esse tipo de arte caracterizou-se pelo abandono das expressões artísticas tradicionais e pela consequente proliferação de linguagens estéticas. São os “ismos”: dadaísmo, cubismo, impressionismo, futurismo, atonalismo, surrealismo, etc., ou seja, movimentos artísticos que reivindicavam sua própria expressão artística fechados em si mesmos. Isso ocorreu sobretudo porque, à medida que o capitalismo levou a divisão social do trabalho às suas últimas potências, já em sua fase imperialista, a arte deixou de ser expressão da elite econômica para ser expressão da elite intelectual. A própria criação artística deixou de se comunicar com a classe dominante como um todo para ser a expressão de um substrato intelectual, normalmente de origem pequeno-burguesa.


Essa hiperespecialização da arte se refletiu no divórcio com o público. A arte passou a ser cada vez mais hermética, comunicando-se apenas com “um grupo reduzido de estetas seletos”, tornando-se totalmente incompreensível para quem está fora desse círculo. É justamente devido a esse divórcio entre artista e público que a tendência da arte pela arte se fortalece nos círculos artísticos.[1] Na Rússia revolucionária do início do século XX, conforme a cultura proletária se fortalecia, crescia o embate entre essa tendência da arte pela arte e a tendência revolucionária, popular, da cultura.


No período da NEP[2], caracterizada por concessões ao capitalismo, houve um fortalecimento momentâneo da elite intelectual de origem pequeno burguesa e, consequentemente, de sua cultura. No campo da arte, o período caracterizou-se pela organização de artistas em associações autônomas que disputavam não somente a hegemonia no campo estético, como na própria política ao procurarem inserirem seus membros nas instituições responsáveis pela produção e educação artística como jornais, revistas, conservatórios, galerias, etc.[3] Todos esses elementos contribuíram para que expressões artísticas de tendência de vanguarda fizessem parte da paisagem artística soviética no período da NEP, sendo as Vkhutemas uma dessas expressões.


Devido a proliferação dessas tendências isoladas e individualizadas, o período da NEP é interpretado por intelectuais e acadêmicos de tendência pequeno-burguesa como um “oásis” cultural na história soviética, logo destruído nos anos 30 pelo fortalecimento da cultura e estética proletárias. Segundo essa visão, o período da NEP e suas manifestações, como as Vkhutemas foi um período de florescimento da “verdadeira experimentação” e da “arte radical”. Enquanto que a estética proletária e o realismo socialista significam decadência, atraso, etc. No entanto, do ponto de vista proletário, as Vkhutemas representaram um momento importante, porém específico e limitado da cultura socialista, impossível de se sustentar, nas condições de então, na medida em que o socialismo avança.


Em abril de 1932, foi publicada a decisão de reestruturação/encerramento das Vkhutemas:


“O Comitê Central constata que nos últimos anos, com base nas significativas conquistas da construção socialista , alcançou-se um grande crescimento tanto quantitativo quanto qualitativo na literatura e na arte.


Alguns anos atrás, quando na literatura ainda havia forte influência de elementos estranhos, especialmente vivos nos primeiros anos da NEP, os quadros da literatura proletária ainda eram fracos, e o partido auxiliou de todas as formas a criação e fortalecimento das organizações proletárias no campo da literatura e [outras formas] de arte com o objetivo de fortalecer a posição dos trabalhadores da arte escritores proletários [e auxílio ao crescimento dos quadros de escritores e artistas proletários].


Essa circunstância gera um perigo de que essas 173 organizações deixem de ser um meio de grande mobilização de escritores e artistas [realmente] soviéticos em torno da tarefa da construção soviética, e se transformem em meio de cultivo de círculos isolados, com separação [eventualmente] das tarefas políticas de contemporaneidade e dos significativos grupos de escritores e artistas simpáticos à construção socialista [e dispostos a apoiá-la].


Daí a necessidade de uma respectiva reconstrução das organizações artístico-literárias e a ampliação de sua base de trabalho.”



NOTAS


[1] Plekhanov já tinha apontado isso em seu livro A Arte e a Vida Social.

[2] NEP (Nova Política Econômica): Política econômica adotada no X Congresso do Partido Comunista (Bolchevique) da Rússia, que estabeleceu a necessidade de reedificação da economia nacional mediante concessões ao setor privado (nacional e estrangeiro) e ao campesinato pois o país estava devastado pela guerra civil levada a cabo pelas forças reacionárias russas e pela intervenção das potências capitalistas estrangeiras interessadas em derrocar completamente a edificação da nova sociedade socialista, cuja base econômica precisava ser reerguida. A NEP autorizou, neste período, a introdução de elementos capitalistas na cidade e no campo: estimulou a produção mercantil camponesa como forma de envolvê-los ativamente no processo produtivo e então acender o rendimento da produção agrícola; nas cidades, ao setor privado ligado à indústria, foram permitidas a abertura de pequenas empresas. O Estado manteve forte comando da economia mesmo durante este momento histórico levando adiante, conjuntamente a este processo, a construção da grande indústria socialista. Quanto às concessões de empresas ao capital estrangeiro, o Estado estabelecia uma relação de arrendamento onde, sob contrato e prazo determinado, os capitalistas poderiam explorar certo setor industrial (extração de carvão mineral, madeira, ferro, petróleo, dentre outros) desde que pagassem ao Estado - que continuava como proprietário da empresa - com uma parcela do que foi produzido/extraído e outra parcela sob forma de lucro. Sobre tais concessões, disse Lenin a 25 de abril de 1921: “A concessão é uma espécie de acordo de arrendamento. O capitalista se torna arrendatário de parte da propriedade estatal, por contrato, por um determinado prazo, mas não se torna dono. A posse continua com o Estado.”.

[3] Desenvolvendo diversos setores da economia, a NEP foi capaz de estabelecer uma conexão recíproca entre a cidade e o campo, correspondendo os interesses particulares do campesinato - que paulatinamente transitavam da pequena produção mercantil para a economia socialista mediante a cooperação - com os interesses gerais da classe operária socialista. A NEP foi uma necessidade histórica identificada por Lenin e o Partido Bolchevique, de transição da economia capitalista para a socialista, sendo encerrada no final de 1927.

[4] Em 1932, correspondendo aproximadamente ao início do segundo plano quinquenal, essas organizações autônomas foram dissolvidas e unificadas nos sindicatos de escritores, compositores, etc.

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