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Marighella: "A Religião, o Estado, a Família"


A bancada do Partido Comunista já tem ocupado a tribuna mais de uma vez para dar sua opinião sobre o mesmo projeto, depois que no plenário foi lido a declaração de voto pelo ilustre Deputado Caíres de Brito.


Dizíamos, então, que o projeto constitucional era reacionário, falho e insuficiente, preso ainda a fórmulas antiquadas, sem ver a realidade brasileira, assegurando a hipertrofia do Executivo, mantendo um velho instrumento de estagnação e retrocesso como o Senado, negando o direito de voto a praças de pré e aos analfabetos, sujeitando a justiça eleitoral ao Poder Executivo, negando a autonomia dos municípios, negando o direito de greve, passando para uma tímida repressão aos trustes e monopólios, em vez de impedi-los; não abrindo perspectivas para liquidação do monopólio da terra, fonte do atraso de todo o nosso povo, e, por fim, não assegurando a completa separação entre a Igreja e o Estado.


Fizemos críticas ao projeto exatamente por esses motivos. Hoje, coube-me a honra de debater, em nome da minha bancada, o ponto a que acabo de referir-me — a separação da Igreja do Estado. Nas críticas que aduzimos, naturalmente não envolvemos a Grande Comissão, em seu conjunto, uma expressão da cultura e da notabilidade do nosso povo, mas que, evidentemente, não pôde elaborar projeto capaz de satisfazer às nossas condições, e, por isso mesmo, de transformar-se em Constituição que encarne a realidade brasileira, que impeça os poderes ditatoriais e, também, evite a volta da reação e do fascismo, assegurando à nossa Pátria, progresso e democracia.


Sr. Presidente, como tenho de me referir, particularmente, à separação entre a Igreja e o Estado, devo analisar os artigos do projeto relacionados com esse assunto — art. 159, §§ 9, 11 e 13 e art. 164, §§ 37 e 38. Importante, para nós, é o confronto dos dispositivos análogos das Constituições de 1934 e 1891.


Tomemos o artigo do projeto de 1946 atinente à liberdade de consciência, e do teor seguinte:


“É inviolável a liberdade de consciência e de crença, e garantido o livre exercício dos cultos religiosos, desde que não contravenham à ordem pública ou aos bons costumes. As associações religiosas adquirem personalidade jurídica na forma da lei civil”. (Art. 159, § 9.°).


A Constituição de 1934, no seu artigo 113, item 5, diz mais ou menos a mesma coisa quanto à liberdade de religião e à liberdade de consciência e de crença. Mas a de 1891, no artigo 72, § 3.°, tem redação mais precisa, indicando maior progresso que o projeto de 1946:


“Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto, associando-se, para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum”. (Art. 72, § 3.°).


O dispositivo do projeto de 1946 com as restrições que estabelece no atinente à ordem pública e aos bons costumes, dá, mais uma vez, à polícia do Brasil poderes para intervir nas questões relativas à religião e impedir o livre exercício dos cultos religiosos. Não nos devemos esquecer de que, durante o longo período do Estado Novo eram os Centros espíritas fechados sob alegação de constituírem focos de agitação. Esse mesmo perigo correremos se, por acaso, inadvertência ou imprevidência, sagrarmos o que ficou assentado no dispositivo do projeto constitucional de 1946.


Verifica-se, Sr. Presidente, do confronto entre o projeto ora em debate e a Constituição de 1891, que esta leva a palma.


Se analisarmos o artigo referente ao casamento civil, também haveremos de ver que a vitória cabe ainda àquela Constituição, porque o art. 159, § 11, do projeto, declara o seguinte:


“O casamento será civil, e gratuita a sua celebração. O casamento religioso equivalerá ao casamento civil, desde que se observem os impedimentos legais deste. . .”


E acrescenta, por último, que o registro civil “é gratuito e obrigatório”.


A Constituição de 1934, no art. 146, ficou, mais ou menos, nos termos do dispositivo do projeto atual. Entretanto, a de 1891, no art. 72, 5 4.° situa a questão de forma muito mais clara e decisiva, afirmando que “a República só reconhece o casamento civil”, evitando assim de modo completo, qualquer ligação que, nesse sentido, se pretenda estabelecer entre a Igreja e o Estado.


Em relação ao ensino, enquanto o projeto de 1946 determina, no mesmo art. 159, no § 13, que “o ensino religioso, nas escolas oficiais, constituirá matéria dos seus horários”, a Constituição de 1891, no art. 72, § 6.°, diz, precisamente, que “será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos”.


Mais uma vez observa-se que a Constituição de 1891 supera o projeto em debate.


Perceberemos, ainda o dedo dos remanescentes do feudalismo, pretendendo, no ano da graça de 1946, encobrir suas tentativas de manter o Estado ligado à Igreja, se formos ao art. 193, item III do projeto, o qual veda à União aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:


“III — Ter relação de aliança ou dependência com qualquer culto ou igreja, sem prejuízo da colaboração recíproca em prol dos interesses coletivos”.


O texto correspondente da Constituição de 1891 — Art. 72, § 7.° — prescrevia :


“Nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial, nem terá relações de dependência ou aliança com o Governo da União, ou dos Estados”.


Ora Srs. Constituintes, ainda uma vez constata-se, do cotejo desses dispositivos, que a Constituição de 1891 também, leva a palma sobre o atual projeto.


As Relações Entre a Igreja e o Estado


Na verdade, Sr. Presidente, uma tese precisa ser debatida aqui: a de que nem sempre a Igreja esteve ligada ao Estado, como, também, nem sempre esteve separada dele.


Assim como nem sempre existiu união da Igreja com o Estado, nem a sua separação, é necessário acentuar que o Estado também nem sempre existiu. É que o Estado não é senão a resultante dos antagonismos de classes; e, mais, é a instituição que visa refrear esses mesmos antagonismos. Como instrumento de domínio de classes, tem ele de valer-se de todos os meios para impor a vontade das classes dominantes sobre as dominadas.


Imposto, polícia, cadeia, tribunal, são como que os quatro pontos cardeais do Estado, instrumento de dominação de classes. E não deixa, também, de valer-se de um outro meio, exatamente a religião.


Lenin afirmava — e tenho de citar Lenin porque estou fazendo a demonstração de uma tese materialista-dialética:


“A religião é um aspecto da opressão espiritual que pesa sempre e por toda a parte sobre as massas populares submetidas pelo trabalho perpétuo em proveito de outrem, pela miséria e a solidão. A fé em uma vida melhor, no além, nasce, inevitavelmente, da impotência das classes exploradas contra os exploradores tanto quanto a crença nas divindades, nos diabos, nos milagres, etc... nasce da impotência do selvagem em luta contra a natureza”.


Se a religião nasce dessa impotência do selvagem contra a natureza pelo seu desconhecimento dos fenômenos, ou das causas que explicam os fenômenos dessa mesma natureza, e se a religião serve, também como instrumento de opressão das classes dominantes, é claro que o Estado, como instrumento de dominação de classes, não poderia de maneira alguma, deixar de parte a utilização da religião; porque, como diz Marx:


“A religião é o suspiro da criatura oprimida, a alma de um mundo sem coração, bem como é o espírito de uma civilização da qual se excluiu o espírito. Ela é o ópio do povo”.


Quer dizer: a religião adormece, a religião faz que os explorados não se possam erguer contra os seus exploradores, a não ser quando se tornam cientes da própria exploração e adquirem a consciência da classe. Mas, assim como a religião era utilizada pelo Estado, a Igreja o foi. O mesmo aconteceu com o Cristianismo. Entretanto, como a tese que procuro demonstrar é de que o Estado nem sempre se tem mantido ligado à Igreja e à religião, faz-se mister, no estudo do início do Cristianismo, observar que este representou uma religião de deserdados, de escravos e, por isso mesmo, se opôs ao Estado durante muito tempo.


Era de Kautsky, ao tempo em que era marxista, a seguinte interpretação:


“A igreja cristã tem sido uma organização de domínio, ora no interesse de seus próprios dignitários, ora no interesse dos dignitários de outra organização, o Estado, onde este conseguiu obter o controle da igreja. Quem batesse estes poderes teria também que bater a Igreja. A luta pela Igreja, bem como a luta contra a Igreja, tem sido, por conseguinte, uma causa de partido, à qual se acham ligados os mais importantes interesses econômicos”.


Como afirmava, porém, Sr. Presidente, que o Cristianismo estava em seu início colocado como a religião dos explorados, dos dominados, devo fundamentar a assertiva. E é o que podemos fazer, se tomarmos a Bíblia e a compararmos com os Evangelhos escritos à época em que o Cristianismo era ainda uma religião de escravos, e com os Evangelhos da época em que o Cristianismo já constituía religião do Estado.


O Imperador Diocleciano sabia, perfeitamente, que não contava mais com os exércitos infiltrados de cristãos que não mais empunhavam o gládio romano e, sim, a cruz, e que não obedeciam às ordens dos césares romanos. Foi Constantino, chamado o Grande, pelos clericais, quem compreendeu ser o único recurso transformar o cristianismo em religião do Estado, e o fez no século IV.


No tempo, portanto, em que ainda não era religião do Estado, dizia Jesus, no Evangelho de São Lucas, escrito nos princípios do século II:



“Dificilmente entrarão no Reino de Deus os que têm riquezas. Porque mais difícil é entrar um camelo pelo fundo de uma agulha, do que um rico entrar no reino de Deus. (XVIII — 24-25.).


Quer dizer, o problema levantado por Jesus não era o do rico ser mau, nem o do rico não ser religioso, mas, precisamente, o fato do rico ser rico, do rico ser explorador.


Era a mesma coisa que afirmava Jesus, no Sermão da Montanha:


“Bem-aventurados os pobres, porque deles é o Reino de Deus; bem-aventurados os que têm fome, porque serão saciados; mas ai dos ricos! ai dos que estão fartos, porque terão fome! ai dos que riem agora, porque depois chorarão!” (Lucas VI-20).


É o mesmo problema, portanto: o rico a ser castigado, não porque seja mau, mas, precisamente, por ser rico e por ser explorador.


Já no Evangelho de São Mateus, escrito no século IV, em que a religião cristã passou, por determinação de Constantino, a ser religião do Estado — o Sermão da Montanha sofre alteração: não se fala mais em bem-aventurados os pobres; fala-se, agora, em “Bem-aventurados os pobres de espírito”... o que, na realidade, não tem sentido nenhum.


Mas a religião cristã, o cristianismo, adotado como religião do Estado, serviu de sustentáculo a todos os senhores de escravos e a todos os dominadores da Idade Média e do feudalismo. A filosofia escolástica é a que servia a esses desígnios de exploração dos senhores de terras e dos barões feudais.


Quando a burguesia se levantou na França contra o feudalismo, insurgiu-se, precisamente, contra a religião, que fora o esteio de todos os senhores feudais. Aí, então, é a própria burguesia revolucionária que pretende estabelecer uma separação entre a igreja e o Estado.


Antes disso mesmo, na Alemanha feudal, tivemos a reforma de Lutero, que se ergueu contra a união existente entre os senhores e barões feudais de então e a Igreja. Em 1523 e 1525, a História pôde registrar movimentos da pequena nobreza e também dos camponeses, inspirados na reforma luterana. Mas Lutero, que representava os interesses da burguesia, não foi capaz de levar adiante sua reforma, passando-se, com armas e bagagens, para a própria nobreza, e a religião luterana ficou, então, como religião do Estado, dentro da Alemanha.


Na França, Calvino pregou, também, sua reforma, que, no fundo, representava as aspirações da burguesia que se insurgia contra os senhores feudais não conseguindo, porém, a vitória em sua terra natal. Mas o calvinismo se espalhou como religião, principalmente pela burguesia de países como a Holanda e Bélgica. E porque não tivesse conseguido a vitória, a burguesia, no tempo de Calvino, em 1789, por ocasião da Revolução Francesa, levantou-se muito mais seriamente contra a religião dando lugar ao materialismo do Século XVIII. Mas depois que a burguesia assegura o seu poder, reprimindo a religião ou estabelecendo com raízes mais profundas a separação entre a Igreja e o Estado, — porque isso interessava a ela própria, como classe, para que se libertasse daquela outra que o dominava anteriormente — logo a vemos numa posição contrária, quando o proletariado começou a aparecer como classe em si e para si.


Depois da revolução de 1848 a burguesia francesa, não estava mais interessada em manter o materialismo do século XVIII, em manter a separação entre a Igreja e o Estado. Para que a burguesia explorasse o proletariado lançava mão, novamente, da religião e procurava ligá-la ao Estado, embora, sob forma disfarçada. É o tempo em que surge o positivismo, que é uma filosofia reacionária para sua época, dentro da França, porque era uma doutrina criada com o intuito de esmagar o proletariado, a classe mais consequentemente revolucionária, destinada a libertar-se a si mesmo e a toda sociedade.


Eis aqui o que o ilustre historiador russo Scheglov afirma a respeito do positivismo:


“O positivismo de Comte significa um retrocesso em comparação com a filosofia da burguesia progressista e revolucionária, com o materialismo francês do século XVIII e com a dialética de Hegel. Comte expressava o ponto de vista da burguesia já convertida numa classe reacionária, preocupada em esmagar a luta revolucionária da classe operária”.


E, assim, Sr. Presidente, explica-se porque, quando a burguesia está interessada em manter seu domínio, se vale da religião, procurando ligá-la ao Estado.


A Luta Pela Separação Entre a Igreja e o Estado no Brasil


Transplantando para o Brasil, esta mesma situação, podemos dizer que, depois de 1822, quando já havia sido iniciado o movimento pela nossa emancipação política, a burguesia ainda incipiente e muito fraca começava a compreender a necessidade de lutar contra o poder temporal, contra o poder dos Papas, contra a teoria que dizia ser fonte do Direito o Poder Divino — omnia potestas a Deo est. Quando já esta situação se verificava dentro do Brasil, pudemos também assistir a fatos como o que se deu quando o Papa Leão XII baixou a bula “Preclara Portugaliae”, instituindo a Ordem de Cristo para que os Imperadores, dentro de nosso país, ficassem com atribuições no sentido de nomear bispos e eclesiásticos, e a Assembleia Geral de então reagia contra essa bula, em 1827, por intermédio de uma declaração do Padre Diogo António Feijó, de Limpo de Abreu, Bernardo de Vasconcelos e José Clemente Pereira.


O parecer da Assembleia Geral dizia o seguinte:


“E quais são esses direitos? A bula os designa; e são, segundo ela, todos os privilégios e direitos sobre as igrejas e benefícios concedidos pelos papas. Mas onde estará o inventário desses direitos e privilégios que os Reis de Portugal exerciam sobre as igrejas do Brasil, adquiridos por concessão dos papas?


Acaso há sobre a terra outra fonte de onde derivem atributos majestáticos que não sejam as leis fundamentais dos impérios?”


Aí, Sr. Presidente, verificamos precisamente a reação daqueles que, procurando libertar-se do domínio de Portugal, já começava por não aceitar essa ligação estreita entre a religião e o Estado. Mas, a tendência para a separação entre a Igreja e o Estado, no Brasil, se aprofunda com o movimento pela implantação da república, e justo é destacar-se aí o papel dos positivistas.


O positivismo que, na França, representou um papel reacionário porque se atirava contra o proletariado, dentro do Brasil representa um papel progressista porque é nossa burguesia incipiente que se volta contra os senhores de escravos, que dominavam no tempo do Império. Este o caráter progressista dos positivistas dentro do Brasil e, por isso, com tanta firmeza se dedicaram à luta pela separação entre a Igreja e o Estado.


Não são, porém, somente, os positivistas que têm desempenhado papel acentuado, no sentido de separar a Igreja do Estado, no Brasil. Há opiniões de outros publicistas e filósofos que também se colocam dentro do ponto de vista democrático e justo, adequado a situação em que vive o povo, que precisa de libertar-se e construir a sua própria grandeza, como é o caso do padre Ventura de Raulica, que dizia:


“a religião não é nenhum pontífice, sacerdote ou cristão, muito menos pode ser instrumento do governo”.


Laboulaye, grande publicista francês que tem toda a razão de ser aqui citado, visto como não é materialista, nem também adepto do marxismo, afirmava que o Estado nada tem a ver com o fiel ou o crente, mas com o cidadão.


O próprio Laboulaye dizia ainda que é justo negar-se à Igreja a posse da terra, porque um dos motivos que a tem levado — e falo aqui, em Igreja, de modo geral — a resistir, quanto a essa separação entre a religião e o Estado, é que, realmente, tem ela interesses econômicos profundos ligados a essa situação, isto é, de proprietária de terras e latifúndios.


Sr. Presidente, sustentando o ponto de vista da separação entre a Igreja e o Estado, estamos, necessariamente, nos colocando numa atitude democrática, de vez que não pode haver democracia sem a liquidação do monopólio da terra, que é contra o progresso. Se ainda não conseguimos a liquidação desse monopólio, qual se acha tão estreitamente ligado o clero, ou a Igreja, que, pelo menos, desenvolvamos os maiores esforços no sentido de garantir, no projeto constitucional de 1946, a separação entre a Igreja e o Estado, não deixando margem alguma para que os remanescentes do feudalismo tripudiem sobre o nosso povo, servindo-se dos dispositivos introduzidos no referido projeto.


Nós, comunistas, sabemos respeitar as religiões; somos pela liberdade completa de consciência e não desejamos, de forma alguma, que essa liberdade seja utilizada pelos dominadores, pelos fascistas, pelos reacionários, pelos senhores feudais para acorrentar o nosso povo, miseravelmente, como o têm feito.


Não combatemos religiões, porque não seria útil, proveitoso, nem mesmo científico, visto como a religião só desaparecerá quando desaparecerem os antagonismos de classe. É necessário compreender que, hoje, todo o povo sofre sem que seus dominadores se lembrem de procurar ver se os que estão sendo explorados são católicos, positivistas, teosofistas, ateus, ou pertencem a qualquer outro credo religioso. O patrão, capitalista explorador, não paga melhor salário a seus operários, porque se trata de um católico se a religião desse patrão antiprogressista é a católica. O sistema de exploração é o mesmo. A única divisão que se pode fazer no seio da sociedade é realmente entre os explorados e os exploradores.


Daí, Senhores Constituintes, a posição do Partido Comunista em querer lutar, com todas as forças da Democracia, como Partido democrata que é, para garantir, no Brasil, a liberdade de consciência, respeitando-se todos os credos, fazendo que se não estabeleça privilégio de um credo sobre os demais, ou não se recorra a essa situação, no sentido de impedir a liberdade democrática e acorrentar mais ainda a nossa gente.


Para encerrar a parte referente à liberdade religiosa, vou ler trecho de A. J. de Macedo Soares (que não se confunde com nenhum dos seus homônimos dos tempos atuais) no qual, em folheto publicado em 1879, sob o título “Da Liberdade Religiosa no Brasil”, tratou do assunto aqui ventilado:


“A consequência da posição da religião em frente do Estado é que este, como instituição encarregada de realizar o direito, deve reconhecer a liberdade da religião e garantir as condições necessárias para o seu desenvolvimento”.


E, mais adiante:


“A Questão da liberdade religiosa está decidida a favor da democracia e parece que, antes que o século XIX se volva nas sombras do passado, terá recebido a consagração de caso julgado”.


Assim, Sr. Presidente, dentro de nossa tese materialista dialética, interpretamos a separação entre a Igreja e o Estado não considerando de maneira alguma entre eles união eterna, mas vendo tudo em movimento e ligando sempre esses fenômenos às condições materiais de vida, às relações de produção, porque religião não é coisa que tenha proporcionado a existência do homem e, sim, porque a vida deste é que faz a religião. Quanto ao Estado, como nem sempre existiu, também não poderia ser dado aqui como coisa estática que tivesse sua existência sempre ligada à Igreja ou à religião.


Apresentamos emendas ao projeto no que tange à separação entre a Igreja e o Estado. Já foram publicadas e as defenderemos no momento oportuno, tão logo sejam submetidas ao voto do plenário.


A Constituição e a Família


Para terminar o debate acerca do projeto constitucional, consubstanciado nos parágrafos 37 e 38 do art. 164. O primeiro deles diz o seguinte:


“A família, constituída pelo casamento indissolúvel, tem direito a amparo especial dos poderes públicos”.


Ora, Sr. presidente, a família, constituída, por qualquer forma, merece o amparo dos poderes públicos. Como Representantes do povo e Constituintes de 1946, devemos procurar exatamente a realidade. Não adianta firmarmos uma coisa no papel, sendo outra a realidade.


Nunca houve esse casamento indissolúvel em todo o desenvolvimento da humanidade. A própria família nunca teve este aspecto estático, que muitos legisladores lhe atribuíram. Sob o ponto de vista materialista-dialético e da nossa concepção marxista, a família também evoluiu e tem de se adaptar às condições materiais de vida. Não são, aliás, somente os marxistas que assim afirmam; ilustre sábio norte-americano que, durante muito tempo, viveu entre os índios iroqueses na América do Norte também adotava esse conceito sobre a evolução da família.


Ouçamos a palavra de Morgan:


“A família é o elemento ativo; nunca permanece estacionária, mas, sim, passa de uma forma inferior a uma forma superior à medida que a sociedade evolui de um grau mais baixo para um mais alto”.


Isso demonstra claramente, Srs. Representantes, que a família, tendo de obedecer a essa evolução, nem sempre foi o que é hoje.


Existia muito antes do casamento monogâmico, da família monogâmica o casamento por grupos a família consanguínea. E para mostrar, dentro do nosso critério científico, como esta é a realidade, posso citar Engels, grande marxista, que tão profundamente estudou a evolução da família, numa obra completa como é “A origem da família, da propriedade privada e do Estado”.


Diz ele:


“De acordo com a teoria materialista, o móvel essencial e decisivo a que obedece a Humanidade na sua história é a produção e a reprodução da vida imediata. Por sua vez, este móvel divide-se em duas partes: de um lado, a produção dos meios de existência, de tudo o que proporcione alimento, vestuário, habitação e utensílios domésticos e, de outro lado, a produção do próprio homem, a reprodução da espécie. As instituições sociais sob a as quais vivem os homens em determinada época estão em intima relação com estas duas espécies de produção, o trabalho e a família.


Quanto menos desenvolvido está o trabalho, mais restrita a quantidade dos produtos do trabalho e menor a riqueza da sociedade, a ordem social está mais subordinada aos laços de consanguinidade”.


Sr. Presidente, quer dizer que houve um momento em que a família era consanguínea, em que não havia barreiras no comércio sexual em que pais e filhos podiam contrair matrimônio, em que no limite da família avôs e avós eram ao mesmo tempo maridos e esposas, em que pais e mães eram maridos e esposas igualmente, e, assim, netos e netas, bisnetas e bisnetos.


O grande e primeiro progresso que se realizou na evolução da família foi justamente a proibição do casamento entre pais e filhos, e, em seguida o outro grande progresso a proibição do casamento entre irmãos e irmãs.


Mas, no tempo em que predominava o comunismo primitivo o comunismo espontâneo, que existiu na época da pré-história da humanidade, o casamento era por grupos e esses laços de consanguinidade iam em grau bastante avantajado.


É com a família punalua que se verifica a proibição de casamento entre irmãos e irmãs, e o progresso que se dá em seguida é com a chamada família sindiásmica, segundo a classificação de Morgan. Ainda aí o casamento é por grupos.


Neste momento, o progresso que se faz é exatamente que entre os vários maridos e as várias mulheres há uma mulher preferida e um esposo preferido, mas podendo o casamento dissolver-se a prazo curto, a qualquer momento, se tanto interessar a um dos cônjuges.


O outro progresso em relação à família sindiásmica é o da família monogâmica. Chegamos assim, à família monogâmica dos dias de hoje, que nem sempre foi monogâmica, segundo estou demonstrando pela tese que apresento aos Srs. Representantes: família monogâmica apoiada na propriedade individual.


Quando se passou da propriedade comum, da propriedade coletiva para a individual, o homem que podia desposar, com vários outros de seus companheiros, dentro das gentes as mulheres que bem quisesse e entendesse, achou que era necessário, para poder transmitir seus bens de fortuna, determinar quais eram os seus filhos e, por isso, apenas por uma questão de ter estabelecido a propriedade privada, exigiu que a mulher mantivesse a indissolubilidade para com o esposo. Obrigou-a, porém, a ter um só marido. Mas em vez de reservar para si uma só mulher, como seria de esperar, preferiu continuar a viver em poligamia, como ainda hoje vive, pois, na realidade, monogamia è indissolubilidade é só para a mulher. Os homens praticam a poligamia, fazem casamentos por grupos, enfim, tudo o que acham que é imoral, mas que se julgam com direito de praticar.


Essa, Sr. Presidente, a realidade que precisamos reconhecer, a realidade capitalista, cujas causas residem na propriedade privada dos meios de produção, causas essas que precisam ser estudadas e melhor meditadas para que possamos fazer obra digna de nossos tempos.


A Igreja Católica nega o divórcio precisamente porque sabe que o adultério é tão inevitável quanto a morte, e o que não se pode remediar, remediado está. É bem verdade que o homem, por ter conseguido a propriedade privada, suprimindo o direito materno dos velhos tempos, obteve assim, uma vitória sobre a mulher e, mais, subordinando-a à situação de escrava, em que até hoje se encontra.


Fora de dúvida, entretanto, é que as mulheres vencidas conseguiram, pelo menos, enfeitar as respeitáveis cabeças de seus maridos, única vingança que podem tirar, até que transformemos esta sociedade. Assim, quando a propriedade dos meios de produção passar a ser novamente coletiva, a ser social e não mais como nas velhas épocas do comunismo primitivo, mas dentro da abundância e da técnica, quando pudermos utilizar da ciência e dos recursos materiais que possuímos, quando, enfim realizarmos essa transformação social, então haverá verdadeira monogamia, não somente da mulher para com o homem, mas também deste para com a mulher. É balela o que se pretende atribuir à União Soviética — que conseguiu já estabelecer o socialismo — de que ali não há família, nem se respeita a família. Precisamente por esse motivo, porque ali se estabeleceu essa transformação social, porque os bens de produção passaram para as mãos do proletariado, precisamente ali a mulher é digna de todo o respeito e pôde deixar de se sujeitar às condições em que se encontra dentro do capitalismo, com essa monogamia, que é acompanhada, inevitavelmente, de um lado, do adultério, e, do outro, da prostituição.


Não é possível, portanto, pretendamos ignorar a situarão real em que nos encontramos no Brasil. Não há a indissolubilidade, a não ser para a mulher. É necessário, pois, coloquemos a mulher no verdadeiro papel digno que lhe compete não somente dentro da família, mas também fazendo-a participar da produção social, porque o que estabelece essa situação e escravização da mulher é o predomínio econômico. É o homem o único que está a trabalhar ligado à produção e que sustenta a família, e, por isso, se acha com o direito de fazer todas as imposições sobre a mulher.


Ilustre dama da sociedade carioca, aliás católica, casada, quando pretendeu dissociar-se de seu marido, porque tinha fortuna, pôde gastar cerca de quatro a cinco mil contos e casou-se com não menos ilustre cidadão da sociedade carioca, também católico, que se dissociou de sua mulher. E novo casamento foi feito, legal. São tidos como figuras de relevo de nossa sociedade e nunca ninguém lhes atirou a primeira pedra.


É que, Srs. Representantes, o divórcio, no Brasil, é privilégio de ricos. A realidade é que a grande massa de nossa população não poderá estar a olhar para os textos que são fabricados sem que se verifique o que ocorre.


Dentro do Brasil existem dois milhões de separados por desquite ou separados naturalmente, sem obedecer a nenhuma lei, porque os casamentos não saíram como esperavam. Um milhão de filhos adulterinos e, mais ainda, um milhão de amancebados ou amasiados comuns.


O povo brasileiro não casa, com tanta complicação, com tantos papéis; por este vasto interior, para trinta milhões de analfabetos o casamento indissolúvel é apenas um dogma religios.o Não é disto que precisamos mas ver a realidade.


Os casamentos que se fazem no interior ocorrem quando o padre passa pregando as missões e depois acabam resolvendo-se da melhor maneira porque os pobres que se casam nessas missões, sob a proteção de Deus, quando as coisas não vão lá muito bem sabem, sem muita pompa e sem muita gala, resolver sua situação e separam-se naturalmente.


Necessariamente teremos de ver essas coisas e por isso, não poderíamos deixar de dar nossa opinião favorável ao divórcio. Não que com o divórcio venhamos resolver os problemas do nosso atraso, porque tudo isso, Srs. Representantes é consequência do monopólio da terra. Enquanto houver feudalismo dentro do Brasil, é claro que haveremos de encontrar essa situação, mas não tenhamos medo de marchar aberta e francamente pelo caminho que está traçado diante de nós, que é o caminho objetivo de encarar as condições brasileiras.


Não podemos, de maneira alguma, ficar a fazer obra de gabinete a discutir dentro de uma Assembleia, com graves responsabilidades, como esta, apenas para atender aquilo que nos dita o dogma da Igreja, o dogma da religião.


Compreendamos o tempo em que vivemos. A matéria, realmente, não é constitucional, mas da legislação ordinária. Não tranquemos, portanto, as possibilidades da solução deste problema, fazendo passar no projeto de 46 um dispositivo que, evidentemente é reacionário, como o do art. 164, §§ 37 e 38.


É necessário estudar a realidade e deixar possibilidade para que, mais adiante, possamos ter no Brasil o divórcio, facilitando o casamento.


Em Portugal, enquanto não se tinha estabelecido o divórcio, a situação era semelhante à do Brasil. Instituído o divórcio, cerca de quatro a cinco mil casos surgiram de uma hora para outra. Mas eram casos que, podemos dizer estavam à espera de solução, ou melhor, iam se resolvendo de qualquer maneira porque a lei não atendia à realidade. Mas, logo que o divórcio se transformou em matéria de lei, que se verificou? Diminuíram os divórcios. De quatro a cinco mil casos, passaram a sessenta e setenta por ano.


Na União Soviética, também, quando se estabeleceu o divórcio, milhares e milhares de casos surgiram repentinamente; mas eram remanescentes do capitalismo que havia sido destruído. Logo depois, quando se regularizou a situação, o divórcio, na União Soviética, vem diminuindo, porque, na realidade, o que o homem aspira é à monogamia e não às condições estabelecidas, pela opressão negra do capitalismo.


Assim também, no Brasil: estabelecido o divórcio, iremos ver que inúmeros casos surgirão, mas são esses casos que existem por aí encobertos, são esses casos que todo o mundo sente e grande parte da nossa população sente na própria carne, mas que a lei não quer encarar. A lei, como afirmava, é para ver a realidade. Devemos dedicar-nos a fazer obra à altura da nossa época e que sendo democrática, estude o problema na forma em que se apresenta e não somente busque introduzir fórmulas, como acontece com o projeto de 1946. Se marchamos para a democracia, se estamos sinceramente devotados a respeitar a opinião de nosso povo e acatar a realidade, é preciso considerar que a liquidação do monopólio da terra é o primeiro passo para chegarmos à democracia a que aspiramos. Mas também não existirá democracia, em hipótese nenhuma, sem a liberdade de culto, sem o casamento civil — casamento civil sem nenhuma intromissão da religião, — sem o ensino leigo e sem o divórcio.

Discurso pronunciado pelo então deputado Carlos Marighella (PCB) na sessão de 4 de julho de 1946, na Assembleia Constituinte, por ocasião da discussão do projeto constitucional, publicado na Problemas - Revista Mensal de Cultura Política, nº 2, Setembro de 1947.


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