top of page
textura-03.png

"A caridade dos burgueses"

Foto do escritor: NOVACULTURA.infoNOVACULTURA.info

A burguesia, para aumentar a sua fortuna — que é uma acumulação de espólios cometidos à custa do trabalho asssalariado — tem necessidade de poder dispor de uma numerosa população de operários livres, desorganizados, sem nenhuma proteção e suficientemente pobres para se verem obrigados a vender por vil preço a sua força de trabalho. A burguesia dividiu sistematicamente os trabalhadores da opressão feudal, destruiu as suas organizações cooperativas e desfez algumas vantagens que lhe oferecia a religião: — os dias feriados da igreja católica, que, com os 52 domingos elevavam a 90 as festas do ano, durante as quais, no antigo regime, não era permitido trabalhar, o que constituía um obstáculo para a exploração do operário, e bem assim a distribuição de sopa e viveres que continuavam praticando alguns conventos, e que traziam de certo modo, aos operários necessitados, um complemento dos seus salários.

O protestantismo, para dar satisfação aos burgueses industriais, que eram muito numerosos nas suas filas, condenou a esmola em nome da religião e aboliu os santos do céu para achar motivo na supressão dos dias feriados na terra.

A revolução de 1789 fez mais. A religião reformada tinha conservado o domingo, mas os burgueses revolucionários, achando que um dia de descanso em cada sete dias era demasiado, substituíram a semana pela «década», e, afim de enterrar definitivamente a memória dos dias feriados, substituíram no calendário republicano os santos por nomes de metais, de plantas e de animais. A lei de 24 de Setembro declarou delito a esmola.

A economia política, esta outra expressão intelectual dos interesses materiais da classe burguesa, secundou a religião reformada em seus atentados contra as instituições de previsão da classe operária: — os aprovisionamentos de trigo feitos pelas municipalidades, a regulamentação do preço de viveres e a «Casa Annonaria» êste modelo das instituições de previsão legado pelo paganismo ao papado, foram objeto de críticas acerbas dos Fisiocratas, de Condorcet, do abade Galiani e de outros, que se tinham convertido nos predicadores da liberdade do comércio dos trigos, que Necker comparava à maior mesa de jogo que possa estabelecer-se, pois «com um só milhão — dizia — se poderia fazer um povo faminto».

Sem embargo, a produção moderna, que para desenvolver-se deve achar trabalho em abundância e a preço reduzido — para o qual os revolucionários burgueses transformaram as condições de vida dos operários e aboliram as corporações e as instituições de previsão do antigo regime — tinha criado, desde o seu aparecimento, um excesso de população operária à qual não podia garantir trabalho, seu único modo de vida.

O número de vagabundos e de mendigos, uma das incuráveis chagas da civilização, passara a ser tão considerável, que, a partir do século XVI, a França teve que adoptar penas terríveis contra eles: — eram condenados ao látego, a ser marcados e a ser enforcados. Estas penas foram modificadas durante o período revolucionário do século XVIII. A lei de setembro, do segundo ano, anteriormente citada, obrigava o mendigo a residir na sua terra natal, a qual devia organizar oficinas para ocupá-lo. Se se atrevia a abandonar a sua população, era condenado à prisão e a trabalhos forçados, e, em caso de reincidência, à deportação para a ilha de Madagáscar.

Durante o reinado de Luiz XV, abriram-se depósitos para os mendigos, que eram verdadeiras prisões onde se maltratava os vagabundos para fazê-los aborrecer a vida errante. O mesmo fenômeno de excesso de população se produzira na Inglaterra, e, como apesar da bárbara repressão, as hostes dos vagabundos e mendigos — lançados pela transformação das terras aráveis em terras de pastagens aumentavam incessantemente — teve-se, neste país da reforma protestante, de completar os castigos por caridade. Com efeito, durante o reinado de Isabel, decretou-se as «Poor-laws» (leis dos pobres), que impunham a cada paróquia o sustento dos seus. Estas leis estão, todavia, em vigor e contribuem para este paradoxal resultado de caridade burguesa: — que o sustento dos pobres corre a cargo dos mesmos pobres. Assim, por exemplo, as paróquias ricas de Londres, de onde o elevado custo dos alugueis afugenta os indigentes, não satisfazem o imposto, enquanto que, nos distritos operários, onde se amontoam, se veem forçados a fazer grandes sacrifícios para atendê-los. A burguesia criava os pobres para dar-lhes trabalho a preço reduzido, mas, quando aqueles recebiam o número que podia ocupar com proveito seu, recambiava-os para as cidades, restituíam-nos às povoações de origem e condenava-os ao cárcere e aos castigos corporais. Fazia crime da miséria que não lhe produzia riquezas.

A questão dos pobres adquiriu um carácter agudo após os primeiros dias da Revolução de 1789. Bailly, que acabava de ser eleito vereador de Paris, para aliviar as misérias dos trabalhadores que a crise política deixava sem ocupação, reuniu-os em número de 18.000, nas alturas de Montmartre. Os vencedores da Bastilha guardavam-nos com canhões, de mechas acesas.

Esta conduta dos burgueses revolucionários, empreendendo a luta pela «emancipação da humanidade», segundo diziam, indicava à classe operária o tratamento que devia esperar da burguesia vitoriosa.

Quando, porém, para resistir às monarquias europeias coligadas, fora preciso fazer um chamamento ao valor das massas populares, os burgueses revolucionários usavam outra vez da força para impor-lhes respeito, prometendo, solenemente, distribuir aos soldados da República mil milhões dos bens dos emigrados. Então, acariciaram os pobres com as declarações demagógicas dos padres da igreja e dos bispos de Constantinopla e de Alexandria. Oito meses depois de ser votada a lei de setembro, ano segundo, a qual não se atreveram a aplicar, Barrere, em 22 de maio do mesmo ano, leu em nome do Comitê de Saúde Pública — na convenção, — uma memória sobre a extirpação da mendicidade..., a qual constituo uma acusação e uma denúncia flagrante contra o governo... « O quadro da mendicidade, não tem sido, até agora, sobre a terra, mais do que a história da conspiração dos proprietários contra os proprietários». Enquanto os membros da Convenção, davam como ração aos pobres a mera fraseologia filantrópica, iam-se apoderando dos bens do clero e dos hospícios que pertenciam aos deserdados e distribuíam aos proprietários os bens comuns, cuja supressão fez aumentar nos campos o número de trabalhadores reduzidos à mendicidade.

Se a guerra não tivesse alistado e lançado nas fronteiras milhares de operários e aldeões sem trabalho e sem meios de vida, teria havido, possivelmente, um levantamento em toda a França, nas cidades e nos campos.

A guerra era um meio mais eficaz de desembaraçar-se dos pobres que amontoá-los em Montmartre, assestando sobre eles os canhões dos vencedores da Bastilha, metamorfoseados, convertidos em cães de fila da ordem burguesa que nascia.

A revolução imprimiu uma marcha acelerada ao movimento industrial. A burguesia, aproveitando-se da liberdade conquistada com a supressão dos jurados, das corporações e dos entraves de todos os gêneros que o regime deposto oferecia ao comércio e à indústria, estabelecia fábricas e desenvolvia as já existentes.

Não tardou, por isso, a lutar-se com falta de carne de trabalho, o que se explica por a guerra ter ceifado um número considerável de operários válidos e adultos. Havendo falta de homens, lançou-se mão às crianças, cujo emprego industrial as corporações então extintas tinham proibido. Antes da revolução, os meninos menores de 14 anos não podiam ser explorados nas fábricas, e, acima desta idade, eram poucos em número. O emprego de muitos menores de 14 anos na fábrica de papeis pintados de Réveillon, excitara a cólera dos artistas do arrabalde de Saint Antoine, os quais a incendiaram enquanto se procedia, em Paris, à eleição dos deputados para os estados gerais de 1789.

A questão do trabalho, tal como a da miséria, foi pleiteada desde os começos da revolução. Não bastando os filhos dos operários e dos artistas para as necessidades do consumo industrial, lançou-se mão dos órfãos e das crianças recolhidas pela caridade pública.