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Mário de Andrade: "Chostacovich"




O fato dum músico erudito como Dimitri Chostacovich se destinar compositor de música para o povo duma comunidade sem classes, parece à primeira vista um milagre e uma contradição. É certo que podemos cavar no passado exemplos de música erudita composta para a comunidade, ou de músicas eruditas que se tornaram populares. Como seriam os casos do Gregoriano ou de Verdi. Mas há uma diferença fundamental. Em exemplos como do Gregoriano ou do Hino Nacional Brasileiro, a música não é criada para servir ao povo e pelo ideal do povo, mas imposta pelos dirigentes das coletividades quer religiosas quer nacionais. Ou mesmo de ideologias políticas gerais, como é o caso da Internacional. Por outro lado, a música dum Verdi ou dum Wagner, por mais que o artista vise o prazer, o aplauso, e mesmo despertar uma qualquer conciência nessa coisa tão conceitualmente insatisfatória que se chama “o povo”, o artista nunca está exatamente servindo ao povo, e não desiste de si mesmo. São Fenómenos individualistas, casos típicos de “mensagem”. O criador acredita na sua mensagem religiosa, como Cesar Frank, patriótica, como Chopin, racista, como Wagner, e pretende impô-la. Às vêzes impõe mesmo.



Chostacovich é o músico que pretendeu servir politicamente à comunidade dum povo sem classes, e por tudo quanto posso saber dele, o conseguiu. A sua música se populariza nos estados soviéticos. E com isso, o caso dele se apresenta excepcional e contraditório: um compositor erudito, erguido em sua cultura ao ponto do refinamento, e em sua técnica ao ponto da virtuosidade, construindo uma arte que funciona política, nacional e esteticamente para uma comunidade proletária.


Caberia insistir na objeção de que muitas das nossas músicas eruditas também são aplaudidas pelas massas das cidades. Como Chopin, por exemplo, a “Tocata e Fuga em Ré” de Bach, a “Sinfonia Inacabada”... Mas si tais músicas são gostadas e aplaudidas, eu afirmo que jamais o são no seu complexo sentido artístico e funcional, mas exclusivamente no seu resultado sensorial, em que certas obras grandes às vezes coincidem com péssimas obras. Na verdade o que o povo aplaude ouvindo Chopin não é a música de Chopin mas a Melodia e o Virtuosismo. De maneira que logo em seguida aplaudirá com muito maior volúpia, uma ária da “Tosca”, por qualquer tenor ruim, mas broslado de firmatas. Porque a ária da “Tosca” é Melodia e Virtuosismo também. É preciso lembrar que as massas dominadas, entre nós, são... dominadas. O que quer dizer que elas não têm suficiente conciência de si mesmas, nem fôrças de reação pra concientizarem o seu gôsto estético e as suas preferências artísticas. O exemplo dos concertos gratuítos dados pelo Departamento de Cultura, de São Paulo, nas vezes em que se conseguiu congregar uma porcentagem predominante de operariado, me leva a imaginar antes uma indiferença grande pela qualidade e carater das músicas e dos autores. Aplaudiam tudo com a mesma facilidade receptiva e a mesma paciência. Já pelos gêneros musicais, não. Os mais delicados e dificeis, o quarteto, a música instrumental de câmara eram sensivelmente menos concorridos e aplaudidos. (Ao que cumpre opor logo o Quinteto de Chostacovich diz-que apreciadíssimo na URSS e laureado pelo Govêrno soviético). Apesar do engôdo dos corais que os entremeiavam, os concertos gratis de música de câmara oferecidos ao público paulistano, sempre obtiveram porcentagem mínima de gente operária, depois das primeiras vezes em que essa gente foi pegada de surpreza, atraida pelo espetáculo gratis.

Mas não há dúvida que certas obras como a “Sinfonia Inacabada” e a “Tocata e Fuga em Ré”, na versão de Stocovisqui, obtiveram popularidade, mesmo num povo tão musicalmente deseducado como o de São Paulo. E aqui entra uma primeira razão, pela qual é possível explicar melhor o fenómeno que Chostacovich representa, como intenção de arte erudita para uma coletividade proletária, e conseguimento dessa intenção.


Embora eu não seja nenhum supersticioso de evolucionismos históricos, eu creio que Chostacovich não é nenhuma geração expontânea e não contém nenhuma contradição. Êle é um elo e talvez o primeiro fruto genial das circunstâncias do progresso mecânico que modificaram a manifestação e consequentemente a concepção da arte da música, neste século. Nós estamos numa das esquinas mais agudas da evolução artística da música, e essa estrada nova foi aberta pela música mecânica. Postos em condição de serem explorados comercialmente e educativamente o disco, o rádio, o cinema sonoro e demais instrumentos mecânicos, êles modificaram a qualificação da música erudita, que se tornou accessivel a todos. E não tenho a menor pretensão, Deus me livre! de ser o primeiro a dizer isso.


A música mecânica não só barateou a audição da música erudita e a expandiu por todos os ambientes, como forçou a sua aceitação pelas classes inferiorizadas. Pela primeira vez ela deixou de ser, como ainda se conservam as artes plásticas, um instrumento de classe e de aprimoramento educativo. À música se tornou um elemento cultural, sinão realizavel pelas estruturas inferiores (não o é normalmente em nenhuma classe, porque implica profissionalidade e especialização), pelo menos comum a elas, e uma proposição de sua vida coletiva. Por causa dos instrumentos mecânicos, a música é a única dentre as artes eruditas, que já conseguiu se tornar uma constância das massas sem que tenha de desistir por isso de suas prerrogativas de refinamento e erudição. Música e cinema se tornaram na atualidade, artes como foi o teatro nas civilizações da Antiguidade, e na Idade Média. Não lhe faltava mais sinão adquirir a mesma concepção educativa e dirigente do teatro. No caso da sociedade atual: uma concepção imediata e concientemente política. Não exatamente, ou apenas, como ideologia política. Mas como fôrça orgânica política do povo, coisa que os instrumentos mecânicos tinham não só tornado praticavel, como posto em evidência. Esta concepção nova da música, coube a Chostacovich aplicar. E sobretudo simbolizar, porque embora ele não seja o único compositor com esse ideal, é o que se apresenta com melhores credenciais de vitória, é o que mais se universalizou.


Foi pois devido a essa importância excepcional de Chostacovich na música contemporânea que, a convite da Editora Cruzeiro, sem entrar no mérito do escrito, Guilherme Figueiredo aceitou traduzir o único livro existente em língua accessivel, sôbre o grande compositor.


Dimitri Chostacovich, tanto pelas suas palavras como pela própria obra, se apresenta como o compositor vivo mais conciente da música que deve e quer fazer. Isto, não só do ponto-de-vista estético da realização da beleza sonora, em que tantos outros se equiparam a êle, mas exata e mais complexamente, do ponto-de-vista artístico, isto é, da utilização da beleza sonora como argumento insinuante e elemento de convicção duma obra de qualquer forma util à vida política do homem. Enfim: uma obra-de-arte, uma arte de beleza, uma bela-arte, conciente e exigente do seu poder funcional, e predeterminada a uma funcionalidade política da coletividade.


Por várias vezes Chostacovich tem se deixado falar em prefácios, entrevistas e advertências preliminares à execução de obras suas. Assim, ele afirma que nenhuma música pode se abster de possuir base política coisa de que, na opinião dele, a nossa burguesia democrática tem lerda compreensão. É verdade. Embora toda obra-de-arte tenha, quer queira, quer não, uma base política, os compositores do nosso mundo burguês, dificilmente podem perceber isso, encurralados no esteticismo, pelas classes a que servem.


Já menos agradavel, embora compreensivel nesta guerra em que vivemos, é ler as exacerbações nacionalistas do compositor, e as suas um pouco enfatuadas esperanças sôbre a música soviética e seu futuro. Mas é possivel passar rápido sôbre isso, e verificar afirmações mais importantes para um músico que pretende servir a massas proletárias. Lembrando aquela frase duvidosa de Glinca, sôbre não serem os compositores eruditos a "criar", mas o povo, cujo material os compositores recolhem e manipulam, Chostacovich esclarece não significar isso o uso simplório do folclôre. O trabalho do compositor soviético consistiria em aprender incessantemente com o povo, apanhar tudo quanto este cria, e ser digno do período histórico que está vivendo.


Noutro passo, o músico desenvolve com maior clareza essa tarefa do compositor soviético, afirmando que as obras devem visar, tranchantes e excitantes, os problemas sociais do dia, muito embora isto não deva implicar de forma alguma um abaixamento de nível estético. E também, essa momentaneidade funcional das obras, não abandona a preocupação do futuro. Então, afirmando que o artista deve estar eternamente insatisfeito da sua obra, por maior que esta seja, Chostacovich não só aceita o princípio não-conformista do indivíduo (o que me parece da maior importância, para um artista que representa uma política reinante e ditatorial), como, com suas palavras menos explícitas, reafirma o princípio do “fazer melhor”, que está na base mesma da conceituação moral da técnica.

Eu poderia, dêste jeito, colhendo aqui e além nos escritos do compositor comunista, arremanchar uma estética da arte da música. Mas esse crochê não me parece necessário aqui. Na verdade, nem Chostacovich, nem os estetas, críticos e compositores comunistas, ainda não nos disseram coisa alguma nova, que já não se encontre dito em nosso mundo burguês. Eu quis apenas, com as citações rápidas que escolhi, demonstrar em pontos fundamentais, que Chostacovich está conciente da realidade artística da arte da música e da sua obra.


É certo porém que não encontrei nos escritos dele que pude ler, ideias que me esclarecessem sobre o que ele pensa a respeito de outros problemas fundamentais, peculiares à música. Como o problema da incompreensibilidade intelectual do som musical funcionar em ideologias e práticas de imediata e necessária compreensão intelectual. E ainda o problema angustioso de um músico fazer música erudita pra massas proletárias que, por natureza, não alcançariam o refinamento da música erudita. Mas será mais proveitoso, eu creio, lhe estudar a obra, e apontar nela a maneira com que o grande compositor resolveu os seus problemas e impasses.

Uma primeira contemplação geral, nos deixa bastante incertos sobre a funcionalidade político-comunista que a obra de Chostacovich possa ter. E isto não deriva apenas da incompreensibilidade intelectual da música, mas principalmente dos gêneros, das formas e dos elementos tradicionais usados pelo compositor.

Suponhamos, por exemplo, que de certas obras dele a gente retirasse os títulos; trocasse por palavras do mais infame “capitalismo” os textos de certos corais; ignorasse os fatos e ideias: que levaram o artista a compor a “Lady Macbeth de Mtsenzk”[1] ou a Sétima Sinfonia[2]: o que restava de funcional, e de funcionalidade comunista nessas obras? Não quero responder já. O que eu quis foi declarar que essa pergunta possivel é malícia burguesa que estou longe de ter, e propus apenas pra renegá-la. O título, o esclarecimento preliminar, o próprio nome do compositor são elementos artísticos, embora anestéticos, que funcionam e sempre funcionaram psicologicamente, sugestionam e definem. Queiram ou não queiram os granfinos do esteticismo.

Muito mais incompreensivel à primeira vista é Chostacovich se utilizar sistematicamente de gêneros e formas tradicionais do mundo burguês, algumas delas especificamente de “música pura”, e expressivas e simbólicas das grandezas da Civilização Cristã. Porque terá o músico se servido da forma clássica da sinfonia nas suas músicas orquestrais? e mais desconcertantemente ainda, se atirado ao gênero de câmara, propondo ao seu mundo proletário, obras tão delicadamente refinadas como o Quinteto, e sobretudo o Quarteto em Dó Maior!... Não estou censurando. Eu pergunto e procuro responder.


Eu creio que nessa insistência de Chostacovich em gêneros e formas tradicionais “puras”, há uma lição e uma solução habilíssima. A lição está em que o artista não tem que qualificar a massa proletária como incapaz de viver os gêneros e formas mais esteticamente refinados. Eu me pergunto mesmo, diante do que me conta a estética experimental: porque um caipira analfabeto e rupestre do sertão, não será sensivel ao encantamento delicadíssimo do quarteto de cordas? Eu disse “sensivel” e não “compreensivo de”, se note. O simples fato dos concertos de câmara do Departamento de Cultura obterem muito menor concorrência proletária; o fato dos discos de quartetos e quintetos conseguirem menor venda, não provam nada. Não provam a insensibilidade estética do homem qualquer, nem muito menos a impossibilidade dele vir a gostar esteticamente dêsses gêneros refinados.

Mas provam, e apenas, a maior dificuldade natural de apêlo de certos gêneros sobre outros. Mas isto se dá para quaisquer gêneros e dentro de qualquer classe ou casta ou grupo: tanto dos gêneros e formas eruditas entre pessoas cultas que afeiçoam mais um Verlaine a um Camões, um Miguelanjo a um Donatello, como dos gêneros e formas folclóricas entre pessoas folclóricas, chegando até a comprovar o individualismo do homem folclórico. Um jeca das barrancas do Tietê é muito mais sensivel a um ponteio de violas (música de câmara!...) que a um samba carioca. Um matuto do sertão paraibano prefere um romance monótono a um vibrante côco de praia.

Além disso importa muito o fato das massas soviéticas serem povos esclarecidos, orientados e, por todos os meios de provocação intelectual e sentimental, já muito concientizados do papel que representam no mundo contemporâneo, de que são a mais humana experiência. Embora detestando o mundo burguês, os povos soviéticos não pretendem desistir de tudo quanto esse mundo burguês... do passado, possa lhes propor de util e de grande. É de resto o próprio Chostacovich quem lembra ao músico soviético o exemplo e seguimento “dos grandes músicos do passado”.

Porém, si só por isso esses povos soviéticos mantêm a ambição de admirar e possuir as grandes formas musicais, ainda há que reafirmar aqui, mais praticamente, o fenómeno da música mecânica. Parece facil concluir que toda sociedade nova determina expressões artísticas novas. Esta afirmativa lógica não corresponde à inteira verdade histórica porém. Só quando já perfeitamente sedimentadas é que as sociedades novas alcançam as expressões, o estilo artístico novo que as exprimem. O Gregoriano só se definiu depois de seis séculos de Cristianismo. Só no sec. XVIII se firmou a música instrumental e a forma de sonata, representativas da sociedade moderna. Ora, se utilizando de gêneros e formas tradicionais burguesas, o alegro de sonata, a sinfonia, o gênero instrumental de câmara, Chostacovich recorreu a expressões que, si um tempo foram exclusivas duma classe, a música mecânica já impusera às massas do tempo nosso, e já estão se tradicionalizando nelas. Ainda mais: o reemprego por Chostacovich das expressões estéticas da sonata, da sinfonia, do quarteto, ou da imitação, e do desenvolvimento temático, é de-fato uma revolta conciente, de intenção coletivizadora, contra a música “modernista” da sociedade burguesa contemporânea. Representa o que há de mais antimoderno e de mais negativo dos princípios espirituais, políticos, estético-formais e de gêneros, de um Debussy, de Schoemberg, de Stravinsqui. Nesse sentido, a volta de Chostacovich a princípios construtivos tradicionais dos séculos XVIII e XIX, é um repúdio do esteticismo individualista deliquescente da música burguesa contemporânea. E ao mesmo tempo um aproveitamento muito hábil de soluções que a música mecânica está tradicionalizando, “folclorizando” no povo.

É possivel supor que os pequenos refinamentos eruditos e individualistas de artefazer sejam menos accessiveis às coletividades, do que as grandes estruturas de gêneros e formas, e mesmo de processos fundamentais de composição sonora, melodia, polifonia, acompanhamento harmônico, imitação, etc. Com efeito, todos estes processos fundamentais encontram base ou eco na música folclórica, mesmo das civilizações não-europeias. São estruturas rítmico-sonoras expontaneamente humanas e universais. Já não se poderá dizer o mesmo dos elementos construtivos menores, principalmente dos individualistas, tal movimento acordal afeiçoado, tal arabesco melódico, tal rítima livre. A própria escala varia muito de civilização pra civilização, de raça pra raça. E a escala tonal harmônica é concepção exclusiva da civilização europeia moderna. E nela se constrói em grande parte o folclôre da porção mais civilizada e dirigente dos mundos soviéticos.


Neste particular de elementos menores é que o problema de Chostacovich recebeu soluções várias, por vezes hesitantes e nem sempre satisfatórias, creio, do ponto de vista comunista. A obra do grande compositor se apresenta como um turbilhão desnorteante de grandezas e perigos, e não foi atôa que por um tempo ela caiu no desfavor dos teóricos e dirigentes da Rússia soviética. Caso histórico aliás admiravel um bonito exemplo de humanidade dentre os que o Comunismo já deu ao mundo. É certo que entre músicos, críticos, teóricos de arte houve muita sujeira, muita imoralidade de traição, covardia, fraqueza de caracter. Mas isto só serve para provar que na sociedade mais ideal dêsse mundo, o indivíduo se conservará sempre o mesmo bicho irregular que é. Em compensação foram admiraveis de grandeza humana os dirigentes dos sovietes, na sua repreensão compreensiva e expectante, o compositor em seu mutismo e esfôrço posterior de readaptação, e o povo russo conservando o músico na sua simpatia.

Na obra de Chostacovich é sensivel a luta entre os elementos burgueses herdados fatalmente da sua educação musical e a intenção de criar uma música política e popular. O problema da escala, fundamento de músicas, se impôs como preliminar. Chostacovich voltou resolutamente à tonalidade. Certas obras dele, certas arquiteturas rítmico-harmônicas como a do Quinteto (Sol menor-Si bemol maior-Sol maior) definem o seu tonalismo decidido. E mesmo submisso a certas lógicas de estruturação modulatória, a que o povo é indiferente. De-fato, si a volta à tonalidade se justifica por tornar imediatamente compreensivel uma música a um povo que emprega a tonalidade em seu folclôre, outros processos eruditos de modulação estrutural de partes são universalmente desatendidos pelos folclôres, porque o povo em geral não fixa o som numa altura acusticamente determinada. Aceitando a estrutura modulatória da sonata, me parece que Chostacovich demonstrou a boca entortada pelo cachimbo burguês, e cerceou a liberdade popular por meio dum eruditismo que não há por onde justificar.

Além disso, o Chostacovich erudito e contemporâneo nosso, está claro que não podia se submeter ao tonalismo popular em sua pobreza e simplicidade. Com muita razão ele se reconhece fazedor de música erudita de nivel alto. Ora, si ele é por vezes resolutamente tonal, se aproveitando mesmo do simplismo das tríades para inícios e os grandes repousos finais: a sua música está muito sofisticada, toda ela, por mil e um processos de se evadir do pobre e esgotado tonalismo harmônico. O cromatismo em sua amplitude máxima, a modulação constante dentro da frase, o polifonismo e os conjuntos acordais de grande complexidade interpretativa, e também o constante emprego de intervalos instrumentais largos que disfarçam na variedade dos registros a fisionomia da escala utilizada: todos êstes são processos com que o artista se confirma no espirito atonal da música modernista. É mesmo possivel por isso a gente perguntar si valeu de alguma coisa Chostacovich reafirmar a existência já agora incompetente da tonalidade. Como tonalidade a sua música é tão sofisticada como a dum Hindemith ou Francisco Mignone, e mais que a dum Vila Lobos ou Honegger.

Os elementos mais significativos da maneira com que Chostacovich resolveu o seu problema estão noutro lugar. Está primeiramente na melodia e na sua apresentação instrumental. A meu ver, Chostacovich é um dos maiores melodistas da música contemporânea. Melodista, no sentido cancioneiro da palavra? Não me parece. Em geral, quando o artista carece de expressões cancioneiras, como nos seus finais, ele cria à feição popular. E nem sempre com felicidade. É repetida por alguns críticos, mesmo comunistas ao que parece, que o compositor, sempre muito feliz e inventivo nas várias partes das suas obras sinfônicas ou de câmara, no entanto fraqueja nos finais. Os últimos tempos das suas obras seriam mais fracos que os outros. Não concordo inteiramente com essa observação. Quem criou o esplendido final da Quinta Sinfonia, da Sétima (de que aliás só conheço o Final), do próprio Quinteto, o delicioso último tempo do Quarteto, está longe de ser um mau solucionador de finais.

O que hesita muito nesses finais, não é propriamente a imaginação criadora, mas a solução demagógica adotada frequentemente pelo artista, de refrescar ou excitar a conciencia comunista do ouvinte soviético, com a intromissão súbita, durante o final, duma melodia cancioneira, fortemente dinâmica e eufórica, de imediato caracter popularesco. Esta solução, que consegue se realizar tão admiravelmente no final da Quinta, pode causar também a impertinência divertida mas muito menos elevada do solo de pistão, no último tempo do Concerto para Piano. E mesmo o desacerto creio que desastroso do Final do Quinteto, que chega a tornar esse tempo uma incontestavel descaida sobre as demais partes dessa obra esplêndida.


Mas essa solução de terminar cancioneiramente popularesco o final de obras longas e de refinamento conceptivo solução que reaparece às vezes em obras menores, como na frase conclusiva, em si bemol menor, da ária de Catarina Ismailova a nós, burgueses, se afiguraria como um disfarce. Pra não dizer uma mentira. O músico espertalhão se entregaria a todos os deboches da criação individualista, apenas nos finais mentindo comunismo por meio de euforias populísticas de comício. Mas o drama do grande artista é tão complexo, tão agora já insolúvel, que a mim me irritam estas minhas malícias. O Comunismo não é nenhum bicho de sete cabeças nem qualquer monstruosidade social que venha revirar o indivíduo de fora pra dentro. Chostacovich não tem, repito, que desistir de todo o tesouro musical do Cristianismo e de toda a herança musical burguesa. E não desiste mesmo disso, e com toda a razão.


Ora o princípio de euforia, de triunfalidade, de apoteoso nos finais de obras longas, é elemento psicológico, terapêutico até, universalmente reconhecido e estatuido, que a gente rastreia com facilidade mesmo dentro do mais setíneo Debussy. A solução formal de Chostacovich, de acentuar popolistamente os finais, é didático. É uma demagogia. Mas os dicionários ainda não aceitaram, todos, que “demagogia” seja apenas a repulsiva mácula pejorativa que está tomando no verbo assustado da crítica burguesa de arte. Esta aliás é uma das muitas máscaras de superstição com que a arte e a crítica conformistas do capitalismo se fingem magoadas e superiores, diante de qualquer manifestação mais ardentemente social ou simplesmente humana. Está claro que a problemática de Chostacovich havia de aceitar concientemente elementos ditos “demagógicos” pela efeminada epiderme burguesa. O que carece verificar é que dêsses elementos demagógicos utilizados por ele, uns são legítimos, outros são muito bem inventados, outros são menos legítimos e menos felizes, e outros aborrecíveis e repudiáveis.

A meu ver, o mais detestavel de todos é o da banalidade, implícito ainda especialmente na melódica. Chostacovich, tentando uma solução musical erudita que assumisse qualificação politico-comunista e funcionalidade popular, havia necessariamente que se fixar numa concepção musical de base predominantemente melódica. Porque a melodia é que a gente canta, assobia; porque a melodia é que coletiviza aprendida de-cor; porque a melodia é que “fala” e decreta, pela sua similaridade fundamental com a fraseologia da fala. Essa concepção melodística não só permitiu a Chostacovich, ou lhe aprofundou, a expansão melodista do seu gênio criador, como lhe determinou o tratamento da melodia.

Toda a obra dele está cheia de admiraveis frases melódicas. Os seus andantes são cânticos espléndidos, duma gravidade, duma densidade interior extraordinária, cheia de “sentido”, que nos convulsiona, equiparavel à força e dramaticidade melódica dum Beethoven e dum Cesar Franck. Em sua peculiaridade, são linhas que se expandem livres, elásticas, caprichosas no arabesco, com frequentes saltos grandes muito dramáticos. Lembro de passagem, para não me referir à Quinta e ao Final da Sétima, a belíssima frase enunciada pela viola, no Moderato do Quarteto, o adágio do bailado “Idade de Ouro”, ou o impressivo Andante do Concerto pra Piano. Aliás neste, depois do primeiro alegro, à linda frase das cordas, o piano sola numa linha surpreendentemente brasileira... Não é porém o único “brasileirismo”, que a gente respiga em Chostacovich, demonstrando mais uma vez essa coincidência estranha da música eslava com a brasileira.

A prevalência melódica, a utilização de arabescos cancioneiros de caracter popularesco, a necessidade de tornar a obra francamente compreensivel ao público proletário, bem como ainda a facilidade melodista da imaginação criadora, provocam em Chostacovich a escorregadela na banalidade. E não são raríssimas as vezes em que êle cai na tal. Mesmo na coleção tão bonita dos “Vinte e Quatro Prelúdios”, nem sempre o cromatismo consegue disfarçar os insultos da banalidade melódica. Na Sexta Sinfonia então, a menos realizada das sinfonias dele que conheço, a banalidade se insinua em elementos vários, sobretudo o primeiro e longo adágio, de grosseira intenção “social”. com seu dinamismo grandiloquente, seus lugares-comuns rítmicos e instrumentais da música de sentido sinistro.

Carece compreender essa conversão populista da música de Chostacovich, sem a perdoar porém. Na verdade, não se pode atribuir banalidade à música folclórica, e só mesmo com muita reserva à música popularesca urbana, que serve para o gasto transitório da coletividade. Seria adotar um critério crítico individualista e hedonístico, para um fenómeno do quotidiano utilitário. Da mesma forma como não é possivel considerar banal o gosto da agua ou do feijão-com-arroz, por compara-los a um borgonha ou a um cuscus paulista de variegada condimentação. Mas de-fato o produto folclórico, mesmo diante dum critério crítico estético, jamais é banal. A música folclórica é fácil, mas não banal. Pode ser vulgar, mas não banal.


A dificuldade brava dos músicos eruditos que pretendam criar obras de utilização popular, deverá ser essa. Obter uma música purificada em seus elementos técnicos, que se torne facil de apreensão e direta de efeito, vulgar, etimologicamente vulgar, mas jamais banal. Especialmente no espírito da música funcional comunista, tenho a convicção de que há um certo Chostacovich, embora raro, depreciativo da coisa popular. Um Chostacovich que talvez pretendendo o vulgar, descamba num ou noutro passo para o banal e os efeitos de sensualidade epidérmica.


Nem mesmo a Quinta escapa sempre disso, com o seu Esquerzo, tão impregnado do mau espírito de Tchaicovsqui. Este aliás é o estandarte perigoso que assombra muito a criação do comunista e a deturpa algumas vezes. A música “de efeito”, a música brilhante não pode ser renegada em princípio, e tem sua justificativa funcional, dinâmica, coletivizadora, universalmente reconhecida e aceita. Chostacovich está conciente disso. E talvez mesmo, como personalidade, ele necessite se apoiar no brilho e no virtuosismo. Já nos seus primeiros concertos de pianista, em Moscou, estavam o Concerto de Tchaicovsqui, e uma parte dedicada a Liszt, em que barulhavam os “Funerais” e a “Tarantela”...


Tchaicovsqui é a influência predominante no músico comunista, sobre tudo na obra sinfônica. O Esquerzo da Quinta chega bem a ser um “à la manière de”. No Final do Concêrto para Piano, ainda essa influência é muito nefasta. E nefasto, me parece, isto que chamei de espírito de Tchaicovsqui capaz das mais desnecessárias banalidades e escamoteações de má demagogia, exterior, superficial, dissoluto. Chostacovich nem sempre escapa dessas desnecessidades. Busca infeliz de efeitos, não controlada com severidade e justeza de escolhas, atingindo por vezes o recato maior do instrumento solista. Como os trêmulas de oitava, nos “Prelúdios”, hoje a bem dizer só usados em transcrições pianísticas de obras orquestrais. Ou como a peroração do Prelúdio em Sol Maior.


Em compensação, a prodigiosa técnica orquestral de Tchaicovsqui e o seu estilo sinfônico devem ter contribuido muito para a determinação do estilo sinfônico de Chostacovich. A lição de Stravinsqui, e sobretudo de Procofiev, se denunciava ainda no espírito e no tratamento orquestral da Primeira Sinfonia, em principal pela predominância dos sopros sobre as cordas. Ainda será possivel apreender, no segundo tempo da Sexta Sinfonia, uns laivos estravinsquianos. Mas logo um equilibrio novo se estabeleceu, com emprego mais largo das cordas como função melódica, e seu predomínio solista nas exposições temáticas dos adágios. Os refinados falarão também numa “demagogia” das cordas... Eu creio, mais pensadamente, que isso é compreender e aceitar com lealdade um fenómeno fisiológico: o efeito extasiante e sentimental das cordas sobre as coletividades, jamais esteticamente fatigadas disso.


Ainda imagino que a lição de Tchaicovsqui determinou no músico comunista a solução mais social, mais para o povo, de preferir na orquestração o princípio clássico da nitidez linear estrutural, ao princípio impressionístico dos efeitos de timbre difundindo as formas nas névoas da coloração. Entre Tchaicovsqui e Rimsqui-Corsacov, o comunista optou pela tradição do primeiro, e me parece que a sua opção foi comunistamente a melhor. E Chostacovich se tornou um dos mais habeis orquestradores da atualidade, com uma técnica e um sentimento do sinfonismo raro alcançados com tamanho equilíbrio e bom conseguimento. Mesmo no perigo do descritivismo e do característico, como nos interlúdios sinfônicos da “Lady Macbeth de Mtsenzk”, sobretudo na magistral fuga dos bêbados, Chostacovich preserva íntegra aquela qualidade sinfônica que torna a Quinta e a Primeira Sinfonia (repito: desconheço a Sétima) momentos dos mais altos do sinfonismo contemporâneo.

Em resumo: na urgência de criar uma música que fosse política, comunista e proletária, porém que conservasse o nivel da música erudita, de base fatalmente burgues-europeia, nem todas as soluções adotadas por Chostacovich são satisfatórias. Si ele aceitou com lealdade os elementos musicais demagógicos, nem sempre as suas demagogias sonoras levam o povo à virtude, mas ao vicio. Si aceitou com franqueza a liderança melódica e suas consequências estratégicas de espírito, de estilo e de técnica, nem sempre ele soube se conservar dentro da pureza melódica e da necessária facilidade do accessivel. Não só se impurificou por demais nos cromatismos, não sabendo como, ou não podendo ultrapassar a deliquescência burgues-capitalista do ultratonalismo, como, por outro lado, confundiu por vezes o vulgar e o simples, com o simplório e o banal.


Diante de tamanha complexidade, o nosso mundo democrático, e parece pelo que diz este livro, o próprio mundo da crítica soviética, se dividem. Uns compreendem Chostacovich, e talvez mesmo pré-compreendam, por excesso de amor. Como é o caso dum dos maiores regentes da atualidade que considera o russo da mesma altura de Beethoven. Pode muito bem ser: O imenso Beethoven também está inçado de descaidas. Apenas, pra se ser Beethoven, é necessário a gente se tornar o passado. Outros se esforçam por compreender, mas não conseguem ceder: Chostacovich é banal, Chostacovich prometeu muito mais do que está cumprindo. Chostacovich se repete e repisa; adota sempre as mesmas soluções formais, as mesmas modulações harmônicas de episódios, as mesmas imagens sonoras. Querem variedade e riqueza... capitalista. Não sabem compreender que por certas soluções sistematizadas, Chostacovich se tradicionaliza, se torna mais reconhecivel imediatamente às massas, se “folcloriza”. Enfim, os puristas se arrepiam, achando que isso de se inspirar no drama de Petrogrado ou no Primeiro de Maio é publicidade; isso de cantar ao povo é demagogia; isso de se dizer “música comunista” é farol.

Isso de ser música comunista é farol... Volta aqui o problema dos títulos e todos os outros processos premonitórios de que a música sempre se utilizou pra se qualificar. E também a advertência, pouco aceitavel ao mundo burguês, de que o Comunismo não é nenhum bicho de sete cabeças. Eu pergunto: Sem conhecimentos anteriores, uma contemplação livre que procure ao mais possivel se isentar de prejuizos quer burgueses quer comunistas, poderá descobrir a funcionalidade político-comunista da música “em si” de Chostacovich?


Certamente que não. Mas o problema, desse jeito, estaria mal proposto pela sua restrição tendenciosa. A arte da música, impossibilitada por sua natureza, de atingir a inteligência conciente, não estará jamais em condição de definir e dizer uma ideologia política, como nem qualquer “eu te amo” ou “está chovendo”. Nem siquer poderá assumir uma definição de si mesma que seja imediatamente compreensivel como proletária. É porém capaz de “expressar” tudo isso, ou melhor: atingir uma especificidade técnico-estilística particular que se torne a expressão imediatamente compreensivel duma ideologia qualquer e da sua aplicação social. Como é o caso da música dum Palestrina, dum Bach, do Gregoriano, de um Wagner, dum Chopin. A música, em casos assim, não se torna apenas a expressão duma ideologia, dum ideal, e da sociedade que os representa, mas também um símbolo de tudo isso. Símbolo, desque convencionado, de compreensão imediata a uma pessoa ou grupo suficientemente esclarecido. E símbolo, com potência dinâmica enorme, sugestionador desse grupo ou pessoa. Ora carece não esquecer que, concientemente ou não, todos os símbolos são convencionados. E carece não esquecer sempre que as massas soviéticas estão muito bem esclarecidas da sua ideologia e do que elas representam na sociedade contemporânea.

Este comentário me parece importante porque nos conduz ao valor eterno, e atualmente novo, que a obra musical de Chostacovich, e a comunista em geral, reimpõe à realidade da música. Me refiro à funcionalidade moral, ao valor ético, enfim, ao que na Grécia da Antiguidade, se chamava o Ethos da arte da música. Este ethos sempre existiu nas músicas de todas as culturas, desde as mais primitivas até as grandes civilizações não-cristãs. Nós o vamos encontrar, ainda lúcido, nas recomendações dos Padres da Igreja Primitiva, e mesmo no Gregoriano puro, monódico e em uníssono da época medieval. E aí, apesar do mau conselho erudito e urbano, ele se conserva bastante íntegro na prática folclórica, onde cada música tem seu sentido e destino, onde seria impossivel cantar un abộio na hora de cantar romances: êsse ethos se dispersou e se perdeu inteiramente na música erudita, com o desenvolvimento do individualismo cristão e a fixação das sociedades de princípio democrático. E a música desaprendeu a noção do ethos.

A obra de Chostacovich, a música comunista, sem fazer isso com a prefixação ditatorial político-religiosa dos gregos, dos egípcios, dos indianos, reimpôs a noção e o sentimento do ethos na música da atualidade. O crítico musical comunista A. Ostretsov estudando uma obra pré-comunista de Procofiev, o “Canto Sinfônico”, conclue que o seu sentimento lírico é o pathos de esgotamento social e cultural dum homem desiludido do presente, incapaz de defender o passado e incapaz de acreditar no futuro. Para Ostretsov o “Canto Sinfônico” é uma imagem do estado-de-alma desiludido e incapaz, em que jazem os compositores eruditos da burguesia... Como compreender semelhante “absurdo” qualificativo, sinão o comparando àquele relatório educacional japonês, ainda do século passado, em que se recusava a adoção de melodias folclóricas japonesas nas escolas do Micado, por serem desmoralizantes do indivíduo nacional? Como compreender a censura de Ostretsov, sem admitir a bitola dum valor crítico novo, um ethos, perfeitamente igual àquele que fazia os Padres da Igreja recusarem a intromissão de qualquer instrumento e do cromatismo, no canto cerimonial, e mesmo no seio das famílias cristãs, pela razão de serem imorais e induzirem ao paganismo?


As massas soviéticas diz-que apreciam enormemente a música de Chostacovich. Essa admiração já seria esteticamente justificada pela obra do grande compositor. Mas ela é também predeterminada pelo pressuposto anestético de representar a sociedade para a qual é feita. O prof. Hutchins[3], da Universidade de Chicago, diz lapidarmente: “Uma comunidade se baseia na comunicação. Comunicação implica um complexo de ideais e ideais comuns”. É o que sucede em decisiva e decisória parte no fenómeno comunista da música, e que nos atinge até a nós, das sociedades democráticas.


A obra de Chostacovich não ficará talvez siquer como a expressão musical da sociedade comunista, e muito menos como a sua expressão máxima. Tenho a certeza disso. É mais que provavel que quando a URSS estiver sedimentada e liberta da instância de combate em que ainda vive, e a torna urgente e instável, impossibilitada por enquanto de se concentrar: é mais que provavel que a sociedade comunista alcance na sua expressão musical legítima, uma realidade muitíssimo diversa da sua música atual e da obra de Chostacovich.


Por enquanto, esta é mais um símbolo convencionado, e até mesmo por muitas partes mais uma alegoria, que uma expressão comunística verificavel por si mesma, e portanto legítima. Apenas: ela é pressupostamente comunista, ela se apresenta como possuindo o ethos, o valor moral social comunístico. O povo russo sabe disso. E da mesma forma como o rapaz ateniense escutando um canto baseado no diristi, sabia que êsse canto era digno dele, e o reforçava em juventude, fôrça, nacionalidade, moralidade, e de-fato se moralizava, se fortificava e ardia de amor pátrio; da mesma forma como um adorante de Dionísio se... dionisiava escutando o timbre do aulis e os cantos extasiantes do ditirambo: também o proletário russo se reconforta em sua sociedade, aceita melhor os seus sacrifícios transitórios, se orgulha e se entusiasma de si mesmo e do seu grupo, brinca e ri, descança, escutando a música de Chostacovich.

E eu creio que nós com eles... Porque, e isto me parece definitivo na problemática do ethos musical, este não é pura e simplesmente um pressuposto da inteligência, mas tem sua base na psicologia e na experimentação dos elementos construtivos da arte da música. Tem enfim uma base terapêutica, universalmente e em todos os tempos reconhecida, que não é meramente idealista, mas verificada e provada pela experiência. Assim, é perfeitamente possivel reconhecer e determinar um certo número de elementos éticos na obra do compositor comunista.


Primeiramente elementos gerais. Vinda posteriormente à implantação do Comunismo, já quando o mundo soviético estava num período de relativa afirmação e expansão internas, a obra de Chostacovich não se apresenta mais como uma arte exatamente “de combate”, mas de afirmação. Dêste ponto-de-vista, sem me referir à sinfonia “Outubro” e ao “Primeiro de Maio”, cuja predeterminação de título já predetermina também o sentido, mesmo sinfonias “puras” como a Primeira e a Quinta, se definem pelo seu caracter, como um pean[4]. Da mesma forma que a Sétima por muitas partes é um threno[5]. Só mesmo, pelo que dizem, um trecho grotesco anti-nazista da Sétima, se determinaria como arte de combate.

Neste sentido de arte de combate, a noção do ethos se impõe no caso tão significativo do fracasso ideológico da “Lady Macbeth de Mtsenzk”. Foi o sucesso fulminante desta ópera que forçou na conciencia dos teóricos russos o problema ético da música de Chostacovich, causou a sua queda em desfavor; e os dois editoriais igualmente fulminantes de “Pravda”[6]. A obra não representava a ideologia comunista, nem era a música apropriada às massas dos sovietes, pelo que cantava da depravação burguesa e a esta induzia. Ora a “Lady Macbeth de Mtsenzk”, na intenção do compositor, era apenas uma primeira ópera, ópera “de combate”, denunciando crimes e deficiências de sociedades não-comunistas. Opera apenas inicial, pertencente a toda uma tetralogia que só na sua peça conclusiva, daria à personagem de Catarina Ismailova e ao seu caso a significação pejorativa social e de redignificação da mulher, que deveriam ter. Mas sucedeu que separada do resto da tetralogia ainda não composta como si fosse um desses capítulos preliminares de romances moralistas, em que o herói é todo baixeza e imoralidade, à espera do capítulo final, pra se rehabilitar — sucedeu que a “Lady Macbeth de Mtsenzk” ficou só imoralizante. E sinão exaltatória, pelo menos induzindo a práticas sociais pervertidas e pervertedoras. E pela anuência, pelo sucesso formidavel que obteve, ela “roubou” as intenções do autor. D'ai a justa denúncia de “Pravda”, e a necessária punição de Chostacovich.


Mas tenhamos a coragem de ir até o fim: Nada disso impediu porém que Catarina Ismailova voltasse ao palco, e continue cantada por toda a Rússia soviética, e com enorme favor público. Ora êste fato me parece mais importante que a sua possivel explicação. A explicação nos dirá que o povo soviético está suficientemente esclarecido, conhece o significado ético de combate da ópera, e já sabe se rir das infâmias das sociedades não-comunistas. Nada disso satisfaz diante do “gôzo” artístico (não apenas estético) que a Catarina Ismailova causa nas massas comunistas, ao ponto destas lhe darem preferência sobre outras óperas e peças eticamente nobilitadoras da URSS. Tanto mais que a estética experimental já definiu o valor de participação e de identificação, de “empatia”, do gôzo artístico. Mas o caso da “Lady Macbeth de Mtsenzk” assume a meu ver um sentido particular, sentido ético, que sem ser propriamente desmoralizante, é fisiologicamente sensual. Um valor ético de farra. Ora já isto mesmo sucedia na Grécia, em que certas escalas, ritmos, instrumentos, também possuiam um ethos alcoólico que levava à farra e à licença, e se aplicava nos momentos em que era permitida a certos grupos a queda em licenciosidade.


No mesmo sentido da noção do ethos, livre da determinação interessada da propaganda política, é da maior importância contemplar dois outros casos principais, o do quarteto em Do, interpretado “Primavera”; e ter o Governo soviético concedido o prêmio Stalin ao Quinteto, isto é, a uma obra a que não é possivel atribuir funcionalidade política objetiva, e que mesmo contando com o seu último tempo, é sempre um refinamento de “arte pura”. Repito: o Comunismo não é nenhum bicho de sete cabeças que venha transgredir os valores eternos da vida humana. Com Comunismo ou sem êle, a Primavera será sempre um valor exultante da vida. Dionísio renascerá todos os anos, trazendo a força viva do alimento, da juventude, do amor. E numa sociedade proletária e sem classes, a primavera decerto renascerá mais perfeita que entre nós, onde ela não se distribue por todos. Mas dirão que estou fazendo demagogia... também dessa forma, o valor mais específico, mais intrínseco da arte da música, o valor livre e purista do som, jamais deixará de existir. O Governo soviético escolhendo o Quinteto pra laurear, que era também uma das obras mais belas da atualidade, consagrou em sua Política, o valor eterno da música pura.


Mas ainda outras manifestações mais objetivas do ethos são facilmente descrimináveis na obra de Chostacovich. Assim os do pean triunfal, do threno elegíaco, a felicidade dionisíaca da coreografia, o do brinquedo humorado. Todos estes são valores éticos facilmente dinamizadores de massas populares, e não é preciso nenhum refinamento culto pra senti-los. São fisiológicos, antes de mais nada.


Ja a Primeira Sinfonia se utiliza, nos tres primeiros tempos, de diversos e constantes esquemas rítmicos de marcha. Só o quarto tempo se alastra por elementos mais livremente dinâmicos, mas que não se poderá nunca dizer livremente individualistas. Porque os dinamismos coreográfico-marciais dos tres primeiros tempos, são aí substituidos pelo desencadêio dos materiais sinfônicos, os contrastes brutais, os efeitos instrumentais drásticos, como o inventadíssimo solo de tímpanos. (Sempre ainda o sistema de facilitar o final, para mais imediata identificação popular com a música...) O artista não desdenha os elementos éticos da grande dramaturgia musical, como na coda do segundo tempo, a certas irrupções estrídulas dos violinos, no último, em que estamos tão próximos do espírito verista, que talvez fosse mais cômodo nos acreditarmos dentro dele.

A Quinta é muito mais delicadamente sensivel na escolha dos alimentos éticos. Nela, Chostacovich aprofundou muito os processos dinâmicos de que dispõe, e recusa pra sempre talvez, aquela solução beethoveniana de acrescentar a voz e o sentido dos textos ao final, que adotara no “Outubro” e no “Primeiro de Maio”, Mas sempre o ethos marcial persevera na Quinta, intenso, e consegue no fim uma apresentação oportuna e popularesca, das mais felizes que eu conheço, de euforia, de triunfalidade, de vitória sobre a vida.


Mas não é só o ethos da triunfalidade peânica que vem proclamado nesse espírito de marcha, coreográfico e coletivista, tão frequente na obra de Chostacovich. E que lhe domina a rítmica. Nos contrastes lentos que se introduzem nas partes rápidas, e sobretudo nos adágios, os estados elegíacos, os threnos assumem por vezes a dinâmica das marchas fúnebres. Mas há sempre porém, mesmo dentro do sentido mais fúnebre, uma sensivel exaltação que se diria eufórica. Do que tomo como exemplo, entre muitos outros, o côro magistral como solo de baixo, do “Caminho da Sibéria”, na “Lady Macbeth de Mtsenzk”.

E ainda o humor, a humorada, o espírito fantasista, que em música assume ritmicamente com mais facilidade apreensivel, as soluções coreográficas. Não lembro agora que crítico assinalou que Procofiev aderindo à vida soviética, perdera a sua feição humorística. Mau sinal?... Chostacovich, pelo contrário, expande à larga em sua música a veia humorística e fantasista da sua personalidade. E da raça eslava. Por certo que estamos a mil léguas do humour inglês. E o que é bem melhor: a mil léguas do humorismo, do fantasismo musical descritivo, obtido à força, por meio de elementos exteriores, inovações, contrastes burlescos, paródias, tão usuais em música humorística, nos compositores fáceis. Já esse aspeto ético se denunciava nas “Três Danças Fantásticas”, op. 1, pra piano, especialmente nas duas primeiras, sendo que a última se espalha num populismo facil por demais. Também a “Polca Satírica” do bailado “The Bolt” é bem mal achada, a meu ver. Mas em todos os esquerzos principalmente, o espirituoso, o humorismo, o grotesco, o fantasista, se desenvolvem magnificamente, sem recorrer a efeitos externos, mas de uma interioridade exata. De que são exemplos o delicioso trecho pra clarineta, fagote e violino, do “Outubro”, padrão de polifonia livre, ou ainda especialmente essa maravilha do que há de mais artístico no humorismo musical, que é o esquerzo do Quinteto.

Ora por tudo isto, verificamos que é perfeitamente possivel só pela música, reconhecer que a obra de Chostacovich é uma criação fundamentalmente “política”, tal como ele a pretendeu. Obra afirmativa, eufórica, optimista, popular, coletivizadora em sua dinâmica, e que reimpõe o conceito do ethos na música da atualidade. Si este conceito repercute objetivamente nos elementos estruturais e nos processos construtivos da composição sonora, ele é no entanto convencional e preliminar, como deve mesmo ser e sempre foi, dada a ininteligibilidade do som musical.


Foi justo isso que se perdeu totalmente na música da burguesia capitalista, perseverando quase apenas no uso dos hinos nacionais. De-fato qualquer pressuposto de ethos, e sua consequente sugestividade, seria delapidadora do capitalismo. Por que neste, o domínio duma classe não se auxiliava mais de nenhum consentimento místico das classes dominadas, e de uma interrelação entre dominantes e dominados a serviço do Deus Rei ou do Estado-Rei, mas de uma imposição de domínio não consentido, porém pôsto à prova, objetiva e ativamente, pela desrelação entre as classes, pelo distanciamento o mais acabrunhador possivel dos dominados. Tudo quanto pudesse impor e provar a estes o fantasma da sua subalternidade, era utilíssimo. D'ai uma arte anti-ética, purista, refinadíssima, e a que a aeridade e incerteza do Impressionismo, ou a misteriosa incompreensibilidade técnica (pra me referir só a música) do modernismo, desfibrava, sensualizava, e sobretudo afastava depreciativamente, impedindo qualquer fixação ética do povo.


A nós, afeitos deseducadamente a esta desmoralidade purista da música europeia e das Américas, custa muito a compreender e ainda mais a viver em sua funcionalidade nova, a música do Chostacovich. Em última análise, nós só conseguimos verificar nela e dela obter a mensagem estética. Esta existe sim, e é enorme. Mas pouco importa que exista! Ou melhor: não existe nada, enquanto “valor eterno” em que a concebemos. Da mesma forma que não existe nada na realidade prática das músicas folclóricas e das civilizações não-individualistas, em que si existe beleza, esta é apenas uma consequência. De maneira que nos sovietes o fenómeno se muda fundamentalmente. Porque si a música de Chostacovich poderá soar dificil, incompreensível e aborrecida para a psicologia das nossas massas populares democráticas, para as massas proletárias soviéticas (tanto mais educaveis que não estavam maleducadas como as nossas, mas não-educadas) a essa música se junge preliminarmente, e em seguida objetivamente um valor ético, um ethos de vitória, de força, de grandeza, que lhe simplifica enormemente a acentação amorosa primeiro, e a compreensão e efeito em seguida. É o pean, a marcha, em que há que se entusiasmar e se satisfazer coletivamente de si mesmo. É o threno em que há que deplorar, cultivar os mortos grandes, aceitar sacrifícios. É o baile, a graça, o humorismo em que há que brincar, descansar. Ou caçoar de, e detestar os que não são como nós. E com efeito se entusiasmam, se sacrificam, se alegram e caçoam e odeiam. Serão coisas que a democracia não poderá aceitar nem compreender... Mas a culpa não é da URSS, da música soviética nem de Chostacovich, si existe a nossa democrática incompreensão. Si a nossa estética tem cinco ou seis séculos de desenvolvimento, e século e meio de fixação, a que o fenómeno musical de Chostacovich representa é de todos os tempos, todas as culturas e todas as civilizações.

Si é certo que toda a música soviética é dirigida para a exaltação do homem — exaltação um bocado loquaz, que torna com ares de exército-da-salvação mesmo a um prof. Igor Boelza[7], que tanto fala em “alegria” — o que caracteriza em seu conteúdo musical a obra de Chostacovich é o optimismo. Ou, creio que não fui feliz na escolha do termo (o optimismo é uma consequência já) o que se expressa na música de Chostacovich é o sentimento da convicção. Não exclusivamente a forma intelectual da convicção, mas, a mais, a sua ressonância sensivel, por certo mais dinâmica e convidativa à psicologia das coletividades. É lícito que me perguntem: convicção de que? Aqui não cabe à música, não é próprio do seu material sonoro esclarecer. As de Chostacovich e da sua música são logicamente as do mundo político em que ele vive e escolhe viver.

Mas não é isso o que importa. Si a música de Chostacovich assume um valor ético para a URSS, à nossa existência burguesa ésse ethos escapa por força, e teremos que divagar nos jardins democraticamente paradisíacos da contemplação. A nós, o que essa música por si mesma define, é um drástico sentimento de convicção, que há-de incomodar está claro não só os estéticos e os puristas, mas assusta e fere muito os introvertidos, os complexentos, os místicos da rabugem e da saúde tênue. A música de Chostacovich tem saúde muita, por vezes esteticamente escandalosa, reconheço. E essa convicção, essa saúde não se sujeita a nenhuma espécie de fracasso, não insinua nem de longe em nós as doces autopunições dos fracassados.

E não será na arrogância dos seus alegros, nas suas marcialidades coletivistas, na vulgaridade popularesca, desadoradamente afirmativa dos seus finais, que eu iria buscar as provas dêsse sentimento de convicção, que leva não só a superar quaisquer fracassos transitórios, mas até mesmo a ignorar a noção do fracasso. Nem mesmo será na alegria efervescente do Quarteto em Do, nem nas brincadeiras luminosas e felizes dos seus esquerzos, nos sarcasmos, nas ironias, nas caçoadas. Onde o sentimento de convicção se demonstra mais admiravel, mais irretorquivel, é nos andantes, nos largos, nos momentos de tristeza. Jamais uma sombra de esgotamento, de submissão, de abandono. Na tristeza a dor atinge o sofrimento elevado das marchas fúnebres, a raiva surda dos resmungos, as ameaças, as felicidades, o clamor, as impaciências contidas. Em Chostacovich a tristeza assume sempre uma forma de força, e a dor, uma promessa de vitória.


Não há dúvida que a obra do grande compositor comunista é duma complexidade enorme. É bastante confusa mesmo, e não devemos lhe querer mal por alguma contradição. O efeito estético, a realidade técnica ainda não apresentam uma diferença fundamental da nossa música, de que a de Chostacovich deriva. Mas esta demonstra o esforço de reeducação do compositor e prova a educação dum povo. E que mais exigir dela, si além disso ela nos vulnera a sensibilidade e nos engrandece, nos oferecendo algumas das mais esplêndidas comoções de beleza, do drama e do triunfo do homem?

São Paulo, janeiro de 1945.

Mario de Andrade.


Texto escrito como um prefácio à biografia de Shostakovich escrita por Victor Seroff, traduzida por Guilherme Figueiredo e publicada em 1945. (N.E.)


Foi respeitada neste prefácio a ortografia do autor.

[1] Ópera baseada em livro homônimo de Nikolai Leskov, de 1885, e estreada em 1934. Em 20 de Janeiro de 1936, no jornal Pravda, publicava-se o editorial Caos ao invés de música (Sumbur vmesto muzïki) denunciando a ópera. No artigo, a obra é acusada de formalista, primitiva, vulgar, entre outras. A ópera retrata a protagonista Katerina Ismailova não como uma assassina, como no livro, mas como uma vítima de seu marido e sogro, comerciantes ricos e proprietários de terras. (N.E.)

[2] A Sétima Sinfonia foi escrita e estreada durante o cerco de Leningrado, em Julho de 1942. Foi um símbolo da luta anti-fascista e da resistência ao avanço das tropas nazistas no território soviético. (N.E.)

[3] Robert Maynard Hutchins (17 de Janeiro de 1899 – 14 de Maio de 1977) foi um filósofo da educação estadunidense. (N.E.)

[4] Pean ou peã é um tipo de música ou hino grego cantado em honra a Apolo. Possui um caráter triunfal e solene. (N.E.)

[5] Ou trenodia. Canção ou hino gregos de luto, cantado em homenagem a uma pessoa morta. (N.E.)

[6] Trata-se de Caos ao invés de música, mencionado anteriormente e o editorial Falsidade do balé (Baletnaya Falsh) publicado no Pravda em 6 de Fevereiro de 1936 atacando o balé Svetliy Ruchey (O Riacho Límpido). (N.E.)

[7] Igor Fyodorovich Boelza (8 de Fevereiro de 1904 – 5 de Janeiro 1994) foi um historiador da música e compositor soviético. (N.E.)

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