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"Machado de Assis x Lima Barreto"


Os dois maiores escritores negros da nossa literatura sofreram dessa obsessão de embranquecer que mencionei acima; um curou-se, o outro não.

“Se me discriminam, pior para eles”, dizia Louis Armstrong toda vez que lhe perguntavam se era vítima do racismo em seu país. Este parece ter sido na vida o lema de Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908). Sua resposta aos preconceitos foi um desdenhoso dar de ombros; e uma arte refinada e aristocrática, muito mais aparentada a êmulos europeus do que brasileiros, o cérebro comandando e organizando as paixões. Literatura sem suor e sem bodum.

Seu hercúleo esforço para embranquecer foi compreendido e ajudado. (Machado de Assis não apenas modelou sua arte pela europeia. Casou-se com branca, nunca mencionava os parentes pretos, não tinha amigos de cor.) Na juventude, modesto tipógrafo metido a escritor, os retratistas o pintavam negro como era; na velhice, famoso e festejado, presidente da Academia Brasileira de Letras, representavam-no quase branco, a tez clara, o pixaim amaciado.

Um meio-contemporâneo seu, Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922), também filho de pretos, trilhou caminho diverso. Na infância e juventude enfrentou, tanto quanto o outro, os obstáculos que a sociedade brasileira antepõe aos que não nasceram brancos – também o mandaram entrar pela porta dos fundos, também exigiram mais dele do que dos outros, também lhe explicaram os fracassos pela cor da pele (uma discriminação que, parece, lhe calou fundo foi não poder formar-se em engenharia). É comum o jovem de cor que contorna esses obstáculos pelo drible: se não posso derrubar, dou a volta; sua personalidade se equilibra neste ziguezague, que quebra a dignidade, mas permite viver e subir. Os brancos não o aceitam, mas o negro força a aceitação – comportando-se como os brancos desejam que ele se comporte. (Este comportamento adaptativo do negro, comum em toda a América, que acaba lhe conferindo dupla personalidade, tem sido bastante estudado por psicólogos e sociólogos.)

Não foi o caso de Lima Barreto. Ele decidiu brigar, como escritor e como pessoa. Enquanto Machado de Assis driblava os obstáculos, na vida e na arte, Lima Barreto sacrificava-se (e, por isso, certamente, odiava que o comparassem com o outro). Seus romances cheiram a povo, denunciam todas as formas evidentes e sutis de discriminação contra as pessoas de cor que se acotovelam no subúrbio, “refúgio dos infelizes”. Ele próprio devido, muda-se para aquela parte abandonada da cidade, assumindo a identidade de preto e pobre. Ora, esta unidade entre sua arte e sua vida é que confere a força de grande escritor. Machado de Assis fugiu, Lima Barreto assumiu. Duas opções sociais (e, no fundo, raciais) diferentes, duas estéticas distintas.

Sua novela mais tensa é Clara dos Anjos. Conta um caso de sedução: Clarinha, menina preta, filha de um carteiro, cai na lábia de um sedutor profissional, Cassi Jones, rapaz loiro de ascendência inglesa; no final, ele a engravida e foge. Clarinha e a mãe se dirigem à casa de família de Cassi. A mãe dele, ao vê-las, modestas e pretas, nem abre a porta. Termina a mãe de Clarinha: “Minha filha, nós não valemos nada”. A crítica literária só tem falado mal deste romance, talvez porque olhe Barreto com o padrão tirado de Machado de Assis. Talvez porque seja um libelo antirracista; e para muitos de nós, pareça mais fácil ser um Cassi Jones que uma Clara dos Anjos.

Em Triste Fim de Policarpo Quaresma, a sobrinha do major pergunta a um roceiro preto, Felizardo, por que não planta nada, se a terra é boa e farta. Ele explica que não tem sementes, não tem arado... E conclui: “... Isso é bom para italiano ou ‘alemão’, que governo dá tudo... Governo não gosta de nós...”

Não sei qual dos dois, Clara dos Anjos ou Triste Fim de Policarpo Quaresma, é o maior libelo contra a discriminação dos não-brancos no Brasil. Ou se a própria vida de Afonso Henriques de Lima Barreto.

Trecho da obra “O que é Racismo”, publicado em 1980

Escrito por Joel Rufino dos Santos

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