"O Chamado da extrema direita"

O reformismo concebido como resposta ao movimento revolucionário, precipita a emergência da extrema direita salvadorenha, oposta a toda mudança social significativa. O grande capital, articulado em associações, segrega organismos políticos instrumentais que defendam seus interesses nestas conjunturas: FARO em 1976, ARENA na atualidade. A ideologia da ARENA baseia-se em um individualismo de organizações que propõe como nacionalista apenas aquele tipo de sistema capitalista existente até agora em El Salvador e que justifica políticas mais drásticas de “segurança nacional”. A base social da ARENA está constituída por membros do grande capital salvadorenho e por setores próximos destes. O atrativo da ARENA para outros setores sociais, que são combatidos com os interesses objetivos dessa direita, pode ser entendido como certa capitalização do profundo descontentamento existente direcionado a atual situação, assim como o êxito de seu estilo de aparente clareza e inegável prepotência, personificado na figura de seu líder. O triunfo da ARENA prova a utilidade da via eleitoral na presente circunstância do país para os interesses da extrema direita, que com toda probabilidade, tratará de fortalecer este instrumento político (ou um equivalente) enquanto perdure o perigo do reformismo.
1. A direita em El Salvador
Os termos “direita” e “esquerda” que classificam as forças políticas são sempre relativos entre si e dizem respeito à situação histórica concreta. Daí sua ambiguidade quando estes termos são empregados para estabelecer comparações entre diversos países ou para ligar uma determinada organização política no espectro ideológico mundial: a esquerda norte-americana pode representar uma direita moderada na França e a direita sueca uma esquerda radical em El Salvador. Sim, apesar de sua potencial ambiguidade, utilizamos aqui estes termos para assumir a linguagem cotidiana e analisar o que um destes termos, “direita”, representa ideologicamente no momento atual de El Salvador. Neste trabalho, pretende-se examinar o que significa nas atuais circunstâncias de El Salvador o vértice das forças de direita, quer dizer, a “extrema direita”, sobretudo, analisando uma instância concreta, o Partido Alianza Republicana Nacionalista, ARENA.
O que melhor parece definir as políticas de direita e de esquerda é a opção por um particular sistema socioeconômico. Em geral, a direita estaria constituída pelo setor que se opõe a todo tipo de mudança, mas, também, por aqueles setores “progressistas” que tomam como bandeira a realização de algumas reformas sociais, desde que estas sejam produzidas dentro de uma determinada ordem e com um determinado ponto de referência. A direita salvadorenha estaria assim constituída por grupos e pessoas que buscam a manutenção da ordem social baseada no sistema capitalista, ainda que alguns aceitem que o atual capitalismo salvadorenho não deve experimentar grandes reformas.
Se o que divide a direita da esquerda são suas diferentes posturas frente ao sistema capitalista, o que estabelece uma divisão no interior da direita, entre uma “direita moderada” e uma “extrema direita”, são as posturas frente ao reformismo. A extrema direita salvadorenha não aceita, nem na teoria, muito menos na prática, que El Salvador necessite de reformas socioeconômicas substanciais, por isso se opõe com todo seu poder a qualquer política que busque este tipo de mudança. Historicamente, enquanto o sistema social permaneceu inquestionável e inalterado sob o firme controle da oligarquia agroexportadora e do grande capital, industrial ou financeiro, a direita salvadorenha permaneceu unida, sem divisões visíveis, portanto, sem que os setores ou núcleos mais conservadores aparecessem como distintos. Somente nos momentos em que, diante da crescente pressão dos problemas internos e a exigência de mudanças radicais, o país se põe a enfrentar alguns tipos de reformas, apenas para modernizar ou adequar o sistema as novas circunstâncias, logo surge a extrema direita, com identidade própria, último reduto do conservadorismo político. Não se deve entender a extrema direita em El Salvador unicamente como contraposição ao movimento revolucionário, mas, em contraposição também das tentativas de reformas ocorridas no país nas últimas duas décadas.
Nestes momentos de perigo reformista, a extrema direita assume explicitamente a corrente hegemônica da oligarquia, nutre-se de seus recursos e queima suas tradições políticas e sociais. Portanto, ainda que sua orientação seja voltar suas forças contra os movimentos populares e revolucionários, nos quais sabe encontrar a razão última de toda exigência de mudança, conjunturalmente, afirma sua postura frente aos setores reformistas, que percebe como avanço da revolução.
1.1 Frente ao reformismo de Molina: FARO
A crise econômica de 1929 e o início da insurreição de 1932 levaram a oligarquia agroexportadora salvadorenha a colocar o manejo imediato do aparato governamental nas mãos dos militares, enquanto reservava para si os postos chave na configuração do Estado e mantinha seu papel e sua parte de último juiz na tomada das decisões fundamentais (ver Guidos, 1980; Sol, 1980). Desde então, a organização militar se coloca na direção do governo, sem que o jogo eleitoral dos partidos pudesse afetar o essencial e na determinação interna dos governantes com mandato. Segundo Andino (1979, p. 624), os militares têm estendido seu poder sobre o aparato estatal ao ocupar cada vez mais postos nos gabinetes de governo e nos organismos e entidades autônomas que conformam o Estado salvadorenho. Este crescente poder abriu a brecha de uma autonomia relativa da organização militar em respeito ao grande capital, o que tem permitido uma tomada de consciência, que tenta traduzi-la em reformas (ver López Vallecillos, 1976). A oligarquia salvadorenha tem precisado enfrentar nos últimos anos repetidos esforços dos setores militares mais conscientes para colocar em marcha reformas significativas, sobretudo a Reforma Agrária. Frente a estas tentativas, a reação da oligarquia tem sido de grande intransigência, chegando inclusive à violência paramilitar, afim de afogar a opção reformista das mudanças.
Talvez o antecedente imediato mais ilustrativo sobre o comportamento da extrema direita nas presentes circunstâncias constitua-se na tentativa realizada pelo então Coronel Molina para desenvolver uma Transformação Agrária, em 1975-1976, ainda que moderada – nem sequer a chamou de reforma (Menjívar y Ruiz, 1976). O Coronel Molina chegou a apresentar seu projeto como um “seguro de vida” para os latifundiários afetados e, em geral, para a classe burguesa (Zamora, 1976). As Forças Armadas respaldaram somente o projeto reformista, o que permitiu ao Coronel Molina afirmar em público que não se daria “nenhum passo atrás”. Mas em 19 de outubro de 1976, apenas três meses depois da Assembleia legislativa decretar o “Primeiro Projeto de Transformação Agrária”, a mesma Assembleia mudava substancialmente o projeto, anulando na prática esta tentativa reformista.
A reação da extrema direita frente ao reformismo do governo do Coronel Molina e, sobretudo, o procedimento concreto que utilizou para atrapalhar o projeto de Transformação Agrária (TA), “dobrando o braço” a mesma Força Armada (A sus órdenes, 1976), representa um antecedente de sua oposição às reformas propiciadas desde 15 de outubro de 1979 e dos mecanismos políticos empregados para anulá-las.
O conflito desencadeado pelo projeto de TA pode ser dividido analiticamente em três fases: planejamento, confrontação e resultado (ver Martín-Baró, 1977). Na primeira fase, a publicação do decreto por parte da Assembleia Legislativa (dominada pelo governante Partido de Conciliação Nacional, submetido por sua vez ao executivo), leva a um primeiro intercâmbio de posturas discrepantes entre o governo e a Associação Nacional da Empresa Privada (ANEO). Aparentemente o decreto surpreendeu a ANEP, e enquanto o governo expõe abundantes dados e argumentos que abonam a necessidade e conveniência da TA, a ANEP se obstina em sua inconveniência, sobretudo em relação à improdutividade das reformas e da inoperância do setor oficial. A primeira fase do conflito termina em meados de julho, quando o governo decide não “perder mais o tempo em uma discussão estéril, porque o pensamento do grupo discrepante está sujeito aos mesmos moldes das anacrônicas estruturas sociais e econômicas que permanecem vigentes neste país” (El Gobierno, 1976).
A segunda fase começa em meados de agosto de 1976, quando a ANEP volta a atacar a TA em razão da ineficiência governamental para administrar a terra, e, portanto, colocando em questão seu “benefício social”. O governo responderá nesta etapa, assinalando sua preparação técnica e provando que a TA é constitucional. No entanto, mais significativo que o novo debate público entre o governo e a ANEP, resulta nesta fase a aparição de um grupo combativo de latifundiários que se organiza sob o nome de Frente Agropecuária da Região Oriental (FARO). A FARO assume a postura e o discurso da ANEP, mas chama a “unificar critérios e a ação a tomar diante do eminente perigo de despejo nossas terras obtidas com o esforço de longos anos de trabalho” (FARO, 1976). De fato, a ação da FARO será a de agitação política, mobilização de diversos setores, inclusive ameaçando marchar sobre San Salvador para revogar a TA. A FARO se mostra desde o começo extremamente bélica e suas manifestações e pronunciamentos são de uma grande violência verbal. Durante esta fase, ANEP e FARO aparecem indistintamente, sem pretender diferenciar-se com clareza. Por exemplo, no mesmo dia aparece um comunicado público da FARO exigindo diálogo com o governo e um da ANEP pedindo o mesmo.
A terceira fase do conflito sobre a TA começa com algumas análises da ANEP, esta rejeita a constitucionalidade da TA, taxando-a como contrária à liberdade de mercado e de propriedade (privada), consagrada pelos princípios democráticos do país o núcleo da terceira fase constitui as contradições públicas realizadas pela FARO, assim como a aplicação das pressões políticas e econômicas mais diversas sobre o governo, que termina cedendo e anulando a TA.
No conflito sobre a TA existem pelo menos três pontos importantes que antecedem os acontecimentos atuais: em primeiro lugar, a postura da ANEP e seu discurso ideológico; em segundo lugar, a aparição da FARO, seu caráter e sua atividade; e, em terceiro lugar, a violência política concomitante e posterior ao conflito.
O primeiro ponto importante constitui a identidade do organismo que assume a defesa dos interesses estabelecidos e se opõe às reformas. Se trata da ANEP, agrupamento representativo do grande capital salvadorenho e eficaz articulador de seus interesses. A ANEP se opõe desde o princípio à reforma agrária e elabora um discurso ideológico para justificar esta postura. O discurso se apoia em três grandes valores: (a) a produtividade como critério máximo da atividade econômica; (b) o legalismo democrático, identificado fundamentalmente como respeito à propriedade privada e ao “livre” mercado; e (c) o nacionalismo, entendido como oposição absoluta ao comunismo ou a qualquer medida socializante.
Ainda que a ANEP tome uma postura pública, tenta criar a imagem de estar por cima das lutas políticas partidárias e de buscar tão somente a defesa dos altos interesses nacionais, sobretudo, das “forças vivas” do país. Daí que a ANEP segregue um organismo para a luta, a FARO, que assume seu discurso, mas, opera-o politicamente. A FARO pode mostrar-se partidarista e violenta, pode “se queimar”, já que constitui uma espécie de kamikaze ou piloto suicida para a ocasião. Pas