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"'Não coloquem a culpa no morcego': saúde e crise capitalista"


O mundo capitalista enfrenta uma crise sem precedentes na história. Em pleno estágio imperialista, sua margem de desenvolvimento está cada vez mais limitada e as consequências deste período, para o proletariado, é de aprofundamento dos antagonismos de classes e a promoção mais aguda de medidas antipopulares que atendam aos interesses das corporações monopolistas. A entrevista da cientista Silvia Ribeiro, “pesquisadora uruguaia que vive no México há mais de 30 anos, é a diretora para a América Latina do Grupo de Ação sobre Erosão, Tecnologia e Concentração (ETC), com status consultivo no Conselho Econômico e Social das Nações Unidas”, desnuda como a pandemia do Novo Coronavírus é consequência desta lógica produtiva que já não atende mais as necessidades da humanidade, que os interesses monopolistas operam em sobreposição aos interesses das grandes massas do proletariado mundial. De antemão, antecipamos, assim como o enunciado da entrevista, que não devemos colocar a culpa nos morcegos. Temos que culpar, mas somente o sistema capitalista de produção.

De certo, não estamos de acordo com o posicionamento da cientista citada em sua totalidade, mas enfatizamos que sua contribuição nos interessa na medida em que nomeia os verdadeiros culpados deste nefasto contexto. É de se valorizar a coragem de Silvia Ribeiro em apontar corporações como Monsanto, Cargill e outras da produção agropecuária como agentes importantes no estabelecimento de processos de produção pecuária de caráter predatório, que tem implicações desde o intenso processo de desmatamento que, no Brasil, segundo a ecóloga Ima Vieira, esse ramo é responsável por 80% do desmatamento da Amazônia brasileira. Como fenômeno articulado ao processo de desmatamento, vemos o padrão de produção da pecuária em si, que padroniza as unidades produtivas a partir de uma lógica que não atende aos requisitos mínimos de preservação da saúde do povo trabalhador. Como aponta Silvia em relação ao surgimento e a proliferação de doenças infectocontagiosas: “já tínhamos visto que está relacionado à gripe aviária, que são vírus que surgem em uma situação em que há uma espécie de fábrica de replicação e mutação de vírus que é a criação industrial de animais, porque são muitos animais que estão juntos, amontoados. Isso se repete tanto nos frangos como nos porcos, que não podem se mover, e portanto, tendem a criar muitas doenças. Existem cepas diferentes de vírus, de bactérias, que se transportam entre muitos indivíduos num espaço reduzido”, ou seja, a noção predatória dos monopólios de criação industrial de animais, para além da própria degradação do animal criado nesses locais, coloca em risco, constantemente, o proletariado mundial, consumidor da produção desta indústria.

Mas as intenções imperialistas consistem em camuflar as causas, com isso, jogam, entre os reposicionamentos geopolíticos e o monopólio da informação como meio de controle dos povos, falsas polêmicas que tendem a nos desviar do que, de fato, importa. Nesse sentido, o cenário que salta aos olhos são as apropriações que, principalmente, países e líderes imperialistas, fazem da existência pandemia para ocuparem, cada vez mais, um posicionamento geopolítico mais interessante, de acordo com seus vis interesses que, obviamente, estão intimamente articulados aos interesses dos monopólios quais representam. Um exemplo é a utilização que Donald Trump, o outsider estadunidense, faz da crise para avançar contra as nações do terceiro mundo. Quando não o faz contra nações de poderio relevante, como a China. Mas, o que sabe por ora, é que o fato de os primeiros casos de COVID-19 aparecerem na China não tem qualquer implicação necessária com a origem do vírus. A ciência não tem qualquer posição mais substancial, até o momento, sobre tal origem.

Como essa introdução está se alongando, outro ponto chave da entrevista feita pelo portal Página 12, é de que o Estado tende a assumir face mais autoritária neste contexto e, ironicamente, até os comunicadores da esquerda do oportunismo eleitoral tendem a fazerem coro com as medidas repressivas em um contexto de não assimilação popular das medidas imposta pelo nosso Estado reacionário, como bem aponta o nobre Breno Altman, com uma capacidade de leitura do contexto que mais se assemelha a “um raio vindo do céu sem nuvens”. Deixamos claro que nossa posição é de apoio a promoção do isolamento social como medida paliativa mais indicada para o momento, no entanto, isso não significa endossar a posição de repressão do Estado contra o povo. Apoiamos, assim como Silvia Ribeiro, que as soluções para essa crise surja do povo em luta, das bases, como a comunidade de Santa Marta, no município do Rio de Janeiro, promoveu uma higienização de suas ruas em combate ao coronavírus.

Por fim, e não menos importante, agradecemos ao camarada e colaborador do NOVACULTURA.info, Raul Dias, pelo trabalho de traduzir esta importante entrevista.

Vamos a ela:

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Apesar de estarmos falando há meses deste vírus, vale a pena repetir a pergunta: o que é o Covid-19?

É uma cepa – a que dá origem à declaração de pandemia atual – da família dos coronavírus, que provoca doenças respiratórias geralmente leves, mas que podem ser graves para uma porcentagem dos afetados, devido à sua vulnerabilidade. Faz parte de uma ampla família de vírus, e como todos os outros, sofre mutações muito rapidamente. É o mesmo tipo de vírus que deu origem à Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS) na Ásia, e à Síndrome Respiratória do Oriente Médio (MERS).

De onde vem o vírus?

Ainda que haja um consenso amplo, científico, que ele é de origem animal, no caso, morcegos, não está claro o lugar de onde vem, porque a mutação dos vírus é muito rápida, e há muitos lugares onde poderia ter surgido. Com a intercomunicação que existe hoje em dia a nível global, poderia ter sido levado de um lugar a outro rapidamente. O que realmente se sabe é que começa a ser uma infecção significativa em uma cidade na China. No entanto, esta não é a origem, e sim o lugar onde se manifesta primeiro. Rob Wallace, um biólogo que estudou um século de pandemias durante 25 anos, e que também é filogeógrafo, ou seja, seguiu o trajeto das pandemias e os vírus, diz que todos os vírus infecciosos das últimas décadas estão muito relacionados à criação industrial de animais. Com o surgimento da gripe aviária na Ásia e da gripe suína (que logo foi chamada de H1N1 para que fosse um nome mais neutro), e também o do SARS, nós – do grupo ETC e do GRAIN – já tínhamos visto que está relacionado à gripe aviária, que são vírus que surgem em uma situação em que há uma espécie de fábrica de replicação e mutação de vírus que é a criação industrial de animais, porque são muitos animais que estão juntos, amontoados. Isso se repete tanto nos frangos como nos porcos, que não podem se mover, e portanto, tendem a criar muitas doenças. Existem cepas diferentes de vírus, de bactérias, que se transportam entre muitos indivíduos num espaço reduzido. Os animais são submetidos a aplicações regulares de pesticidas, para eliminar outra série de coisas que há dentro do próprio criadouro. Também há venenos nos alimentos – em geral lhes dão milho transgênico. Está tudo muito relacionado com o negócio da venda de transgênicos para forragem. Aplicam nos animais uma quantidade de antibióticos e antivirais, para prevenir as doenças, o que vai criando resistências cada vez mais fortes. A Organização Mundial da Saúde (OMS) convocou as indústrias de criação de animais, principalmente de frangos, porcos, mas também a piscícola e a de perus, para que deixassem de aplicar tantos antibióticos, porque entre 70% e 80% dos antibióticos no mundo são usados na criação industrial de animais. Como são animais que têm um sistema imunológico deprimido, estão expostos a doenças o tempo todo, e além disso lhes aplicam antivirais. São administrados antibióticos não tanto para prevenir doenças, mas para engordar mais rápido. Estes centros industriais de criação, do feedlot [confinamento] até a criação de porcos, de frangos, e de perus, amontoados, criam uma situação patológica de reprodução de vírus e bactérias resistentes. E além disso, estão em contato com seres humanos que os levam às cidades.

Mas vem ou não vem dos morcegos?

Tem gente que se pergunta: “se dizem que foi encontrado em um mercado e que provém de morcegos, como é que chega aos animais que estão em criação? O que acontece é que os morcegos, as civetas, e outros que supostamente deram origem a vários vírus – inclusive uma das teorias é que o vírus da AIDS surge de uma mutação de um vírus que estava presente nos macacos –, expandem-se devido à destruição dos hábitats naturais dessas espécies, que se deslocam a outros lugares. Os animais silvestres podem ter um reservatório de vírus, que dentro de sua própria espécie estão controlados, existem mas não estão adoecendo os animais, mas de repente se deslocam a um meio onde se transforma em uma máquina de produzir vírus, porque se encontram com muitas outras cepas e vírus. Chegam a esses lugares expulsos de seus hábitats naturais. Isso tem a ver sobretudo com o desmatamento, que paradoxalmente acontece também pela expansão da fronteira agrícola. A FAO [Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura] reconhece que 70% do desmatamento está relacionado com a expansão da fronteira agropecuária. Inclusive a FAO diz que em países como o Brasil, onde acabamos de ver tudo o que aconteceu com os incêndios, pelo desmatamento para a criação de gado, a causa do desmatamento é a expansão em mais de 80% da indústria agropecuária. São vários os fatores que se conjugam. Os animais que saem dos seus hábitats naturais, sejam morcegos ou outro tipo de animais, inclusive podem ser muitos tipos de mosquitos que se criam e ficam resistentes pelo uso de agrotóxicos. Todo o sistema da agricultura industrial tóxica e química também cria outros vírus que produzem doenças. Há uma quantidade de vetores de doenças que chegam aos sistemas de confinamento nas cidades, sobretudo nas zonas marginais, de gente que foi deslocada e não tem condições de moradia e higiene adequadas. Cria-se um círculo vicioso da circulação entre os vírus.

O que você opina sobre os modos de enfrentamento da pandemia no mundo?

Nada do que está acontecendo neste momento está prevendo a próxima pandemia. O que se discute é como enfrentar esta pandemia em particular, até que em algum momento o próprio vírus encontre um limite, porque há uma resistência adquirida em uma quantidade importante da população. Então este vírus em particular pode desaparecer, como desapareceu o SARS e o MERS. Já não vai afetar, mas aparecerão outros, ou o mesmo Covid-19 vai se transformar no Covid-20 ou no Covid-21, por outra mutação, porque todas as condições se mantêm iguais. É um mecanismo perverso. Deveria ser posto em discussão o sistema alimentar agroindustrial, desde a forma de cultivo até a forma de processamento. Todo este círculo vicioso que não está sendo considerado faz com que se esteja preparando outra pandemia.

É possível identificar os responsáveis por esta pandemia?

É o típico mecanismo do sistema capitalista, que cria enormes problemas que vão desde as mudanças climáticas até a contaminação das águas, dos mares, a enorme crise de saúde que ocorre nos países pela má alimentação, mas também pelos tóxicos aos que [a população] está exposta, que produzem uma crise de saúde nos humanos. Claro que o sistema capitalista não vai revisar isso, porque para tanto teria que afetar os interesses das empresas transnacionais que são as que acumulam, as que concentram tanto a criação industrial de animais, como as monoculturas, inclusive as empresas florestais e o desmatamento feito com viés comercial. Em cada um dos degraus da cadeia do sistema agroalimentar industrial, vamos encontrar umas quantas empresas. Estamos falando de três, quatro, cinco, que dominam a maior parte desse ramo, como acontece com os transgênicos que são Bayer, Monsanto, Singenta, Basf, e Corteva. O mesmo acontece com as que produzem forragem para os animais. Por exemplo, Cargill, Bunge, ADM. Todas têm interesses na criação industrial de animais, porque são sua principal cliente. Muitas vezes são coproprietárias destas fábricas de vírus. Além de questionar as causas… deveríamos mudá-las. E mudar é questionar as mesmas bases do sistema capitalista. É necessário questionar os sistemas de produção, sobretudo o sistema agroalimentar imediatamente. Mas também há uma relação com várias coisas. Por exemplo: quem é mais afetado neste momento pela pandemia? As pessoas mais vulneráveis: os que não têm casa, não têm água. São os mesmos marginalizados por esse sistema, porque não podem acessar sistemas de saúde.

Como é a resposta dos sistemas de saúde?

Nestas décadas de neoliberalismo não se atendeu a necessidade de sistemas de atenção primária da saúde, que é o essencial; mas também não há sistemas de saúde para atender agora a toda a população que está se contaminando em muitos países. Os países onde houve menos mortos em relação à população são países que tinham sistemas de saúde relativamente capazes de atender sua população. Onde os sistemas foram desmantelados, ficaram mais vulneráveis frente à pandemia. O sistema é injusto não somente em relação à produção. É injusto em relação ao consumo, porque nem todos podem consumir o mesmo. É injusto nos impactos que provoca na população mais afetada, que é a mais vulnerável. Em alguns será pela idade, mas em muitos outros é por doenças causadas pelo próprio sistema agroalimentar industrial, como por exemplo a diabetes, a obesidade, a hipertensão, as doenças cardiovasculares, todos os cânceres do sistema digestivo. Tudo isso está relacionado com o mesmo sistema que produz os vírus. No meio disso, vêm os sistemas de resgate dos governos, e em todos os países do mundo, por mais que digam que atenderão primeiro os pobres, ainda que possa haver essa intenção – em outros nem sequer essa intenção existe, como nos Estados Unidos –, na realidade tratam de salvar as empresas, porque dizem que são os motores da economia. Então, repete-se o mesmo esquema. Voltam a salvar as empresas que criaram o problema.

E qual é o lugar das indústrias farmacêuticas diante da pandemia?

Nem mesmo diante da pandemia se fala das causas, pelo contrário, procuram novos negócios, por exemplo, com a vacina. Todo o negócio das vacinas que ocorre nesses momentos, para ver quem chega primeiro, quem consegue a patente. As farmacêuticas estão buscando o negócio. Também é um negócio para todas as empresas de informática, com as comunicações virtuais. Justamente antes da pandemia, as famosas empresas GAFAM (Google, Amazon, Facebook, Apple, Microsoft) já eram as empresas mais valorizadas a nível de valor de mercado de suas ações. E são as empresas que estão ganhando lucros enormes, porque houve uma substituição da comunicação direta, ainda mais, pela comunicação virtual. Os projetos de resgate da economia vão apoiar esse tipo de empresas, as farmacêuticas que vão monopolizar as vacinas, as empresas da agricultura industrial que produzem esses vírus. É como uma repetição permanente deste tipo de sistema capitalista injusto, classista, que impacta muito mais aqueles que já estavam mal. Deve-se dizer também que 72% das causas de morte no mundo são por doenças não transmissíveis: diabetes, doenças cardiovasculares, câncer, hipertensão. São doenças respiratórias mas não por contágio infeccioso, e sim por contaminação nas cidades, com o transporte. Tudo que está sendo feito agora em relação ao coronavírus é porque dá a ilusão de que é possível atacá-lo no sistema capitalista. Que se existe uma pandemia, é um problema tecnológico, e a resposta é criar situações reguladas em cada país, que é uma resolução de viés tecnológico.

Mas existe outra possibilidade de enfrentar essa crise que não seja a medida de isolamento social?

Quero esclarecer que sou a favor de tomar as medidas de distanciamento físico, não social, mas isso deveria ser acompanhado de medidas que possam apoiar aqueles que não tem condições de fazê-lo por sua vulnerabilidade. O fato de selecionar uma doença em particular como neste caso é uma doença infecciosa, para desatar toda a bateria do que seria um ataque global à situação de pandemia, por um lado não questiona as causas, mas por outro, instala uma série de medidas repressivas inclusive, muito autoritárias, de cima pra baixo, de dizer às pessoas: “Façam isso, façam aquilo, porque nós sabemos o que você deve fazer e o que não deve”. Tudo isso está relacionado à cegueira do fundo do problema, as causas, ao mesmo tempo que se diz que a única forma de conduzir a situação que vivemos hoje globalmente é de cima pra baixo, a partir dos governos, empresas, que são os que nos dariam a solução e portanto deveríamos aceitar todas as condições que nos são impostas. Diante disso, acredito que é fundamental resgatar e fortalecer as respostas coletivas e que vêm de baixo.

Por exemplo?

Por um lado, precisamos entender que há um sistema alimentar que é o que chega a 70% da população mundial. Há trabalhos muito sérios de pesquisa da ETC e do GRAIN que mostram que 70% da população mundial se mantém pela produção em pequena escala de camponeses, pequenos agricultores, também hortas urbanas, e outras formas de intercâmbio e recolhimento de comida que são pequenas, descentralizadas, locais. Isto é o que dá de comer à maior parte da humanidade. E não somente a comida é mais saudável, mas também é a que chega à maior parte da população. Deveríamos fortalecer e apoiar essas alternativas. É como um paradigma para pensar soluções a partir da base, descentralizadas, coletivas, de solidariedade, para ver como podemos nos cuidar, frente a uma ameaça que pode nos infectar, mas cuidarmos também uns dos outros, e seguir trabalhando na criação de culturas completamente questionadoras e contrárias ao sistema capitalista, porque é o que está adoecendo toda a humanidade, a natureza, os ecossistemas e o planeta.

Nota dos editores: nem todas as posições expressas neste texto ou pelo autor condizem necessariamente e/ou integralmente com a linha política de nosso site ou da União Reconstrução Comunista.

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