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Fanon: "A guerra da Argélia e a libertação dos homens"


A análise e a apreciação de um dado acontecimento revelam-se frequentemente inadequadas, e as suas conclusões paradoxais porque, precisamente, não se tiveram devidamente em conta os laços orgânicos que existiam entre esse acontecimento particular e o desenvolvimento histórico do conjunto circundante.

É por isso que, para dar um exemplo, o reforço dialético que existe entre o movimento de libertação dos povos colonizados e a luta emancipadora das classes operárias exploradas dos países imperialistas, é objeto, por vezes, de uma espécie de negligência e até mesmo de esquecimento.

O operário e o colonizado...

O processo de libertação do homem, independentemente das situações concretas em que se encontra, engloba e diz respeito ao conjunto da humanidade. O combate pela dignidade nacional dá à luta pelo pão e pela dignidade social a sua verdadeira significação. Esta relação interna é uma das raízes da imensa solidariedade que une os povos oprimidos às massas exploradas dos países colonialistas.

No decurso das diferentes guerras de libertação nacional que se sucederam durante estes últimos vinte anos, não foi raro verificar-se uma certa tonalidade hostil, até mesmo de ódio, por parte do operário colonialista relativamente ao colonizado. É que o recuo do imperialismo e a reconversão das estruturas subdesenvolvidas específicas do Estado colonial são acompanhadas no imediato de crises econômicas que os operários do país colonialista são os primeiros a sentir. Os capitalistas “metropolitanos” acabam por conceder vantagens sociais e aumentos de salário aos seus operários na medida exata em que o Estado colonialista lhes permite explorar e arrasar os territórios ocupados. No momento crítico em que os povos colonizados se lançam na luta e exigem a sua independência, vive-se um período difícil no decurso do qual, paradoxalmente, o interesse dos operários e dos camponeses “metropolitanos” parece opor-se ao interesse dos povos colonizados. Devem conhecer-se e devem combater-se energicamente os malefícios desta alienação “inesperada”.

A luta contra o colonialismo, tipo particular de exploração do homem pelo homem, situa-se, pois, no processo geral de libertação dos homens. Se a solidariedade entre operários “metropolitanos” e povos colonizados pode passar por crises e tensões, é raro que o mesmo aconteça entre povos colonizados. Os homens colonizados têm em comum o fato de lhes contestarem o direito de constituírem um povo. Diversificando e legitimando esta atitude geral do colonialista encontra-se o racismo, o ódio, o desprezo no opressor e, correlativamente, o embrutecimento, o analfabetismo, a asfixia moral e a subalimentação endêmica no oprimido.

Solidariedade dos colonizados

Parece existir entre povos colonizados uma espécie de comunicação iluminadora e sagrada que faz com que cada território libertado seja durante um certo tempo promovido à categoria de “território-guia”. A independência de um novo território, a libertação dos novos povos, são sentidas pelos outros povos oprimidos como um convite, um encorajamento e uma promessa. Cada recuo da dominação colonial na América ou na Ásia reforça a vontade nacional dos povos africanos. Foi na luta nacional contra o opressor que os povos colonizados descobriram, concretamente, a solidariedade do bloco colonialista e a necessária interdependência dos movimentos de libertação.

Por exemplo, o enfraquecimento do imperialismo inglês não pode realmente ser acompanhado por uma consolidação do imperialismo francês. Semelhante resultado pode parecer no imediato evidente. Na realidade, o fluxo nacional, a emergência de novos Estados, preparam e precipitam o refluxo inevitável da coorte colonialista internacional. O aparecimento de povos ontem desconhecidos na cena da história, a sua vontade de participar na edificação de uma civilização à medida do Mundo, conferem ao período contemporâneo uma importância decisiva no processo de humanização do Mundo.

O pacto de Bandung concretiza ao mesmo tempo esta união carnal e espiritual dos povos colonizados. Bandung é o compromisso histórico dos homens oprimidos a entreajudarem-se e a imporem um recuo definitivo às forças de exploração.

A Argélia “território-guia”

A guerra da Argélia ocupa um lugar de eleição no processo de demolição do imperialismo. Desde há quatro anos que o colonialismo francês, um dos mais obstinados deste pós-guerra, se agarra por todos os meios à sua ponta de lança em África. Utilizaram-se todos os argumentos militares e políticos para justificar a repressão e a presença francesa na Argélia. As dimensões desta guerra atroz chocaram e perturbaram a opinião internacional. O colonialismo francês na Argélia mobilizou todas as suas forças.

O esforço militar, económico e político despendido pela França na guerra da Argélia só se pode apreciar objetivamente em função do conjunto africano “francês”. Não há dúvida de que vencer a Revolução Argelina era expurgar ainda por uma dezena de anos o “fermento nacionalista”. Mas era ao mesmo tempo impor silêncio aos eventuais movimentos africanos de libertação e sobretudo marcar com o selo da debilidade e da insegurança as jovens independências tunisina e marroquina.

O colonialismo francês na Argélia enriqueceu consideravelmente a história dos métodos bárbaros usados pelo colonialismo internacional. Pela primeira vez, assiste-se à mobilização das várias classes, ao envio de contingentes, à diminuição das forças de defesa nacional, em benefício de uma guerra de reconquista colonial. Os governantes franceses anunciaram, por várias vezes, uma iminente vitória sobre as forças nacionais argelinas. Parecia que estavam reunidas todas as condições objetivas para realizar a derrota da Revolução Argelina. Mas assistiu-se sempre a uma espécie de milagre, de renovo, de recomeço.

É que o povo argelino sabe que é apoiado por imensas forças democráticas internacionais. Além disso, as massas argelinas estão conscientes da importância do seu combate à escala do continente africano.

A guerra da Argélia está longe de ter chegado ao fim, e, no despontar deste quinto ano de guerra, os homens e as mulheres da Argélia, possuídos de uma fome incoercível de paz, medem lucidamente o caminho dificílimo que ainda têm a percorrer. Mas os resultados positivos, decisivos, irreversíveis, que a sua luta acaba de tornar possíveis na África alimentam a sua fé e reforçam a sua combatividade.

Enquanto a Tunísia e Marrocos, protetorados, puderam obter a independência sem porem fundamentalmente em questão o império francês, a Argélia, devido ao seu estatuto, à antiguidade da ocupação e à importância da implantação colonialista, põe na ordem do dia e de maneira crítica a questão do desmoronamento do império.

Para o colonialismo francês, a Argélia não é unicamente um novo conflito colonial, mas também a ocasião de uma decisiva confrontação, o teste limite. Por isso, as forças francesas reagiram, no decurso deste conflito, com uma brutalidade e uma violência muitas vezes desconcertantes. O conflito franco-argelino pôs o problema colonial à escala da África. As outras potências coloniais em África seguem com ansiedade e terror a evolução da guerra da Argélia. E, do outro lado do Saara, eis que a Guiné independente estende agora a sua sombra “subversiva” em direção aos territórios mais dominados.

A Argélia, ponta de lança do colonialismo ocidental em África, tornou-se rapidamente o vespeiro onde caiu o imperialismo francês e onde se desmoronaram as esperanças insensatas dos opressores ocidentais.

Desde há quatro anos, a guerra da Argélia domina de maneira trágica e decisiva a vida política interna e externa francesa. As relações da França com os outros países ocidentais, as suas dificuldades diplomáticas, ou por vezes militares, com os Estados árabes, a evolução das estruturas colonialistas da velha união francesa refletem nitidamente as diferentes fases da guerra da Argélia.

Obcecados pelo terror de novas guerras coloniais, os homens políticos franceses multiplicaram a vigilância e os convites: repensemos os nossos problemas com as nossas possessões coloniais, é esta a frase que a partir de 1955 ressoa nas assembleias francesas e nos meios políticos. A lei-padrão de Defferre foi criada no intuito de evitar reivindicações nacionais intempestivas.

Mas a existência da guerra da Argélia, os pormenores sobre a repressão colonialista, o heroísmo do povo argelino, despertaram e tornaram audaciosa a consciência dos homens e das mulheres da África.

Nos princípios de 1958, em todos os territórios africanos ocupados pela França, a vontade nacional desponta à luz do dia e partidos cada vez mais numerosos e cada vez mais decididos levantam o problema necessário da luta armada.

No Togo e nos Camarões, os acontecimentos tomaram efetivamente o aspecto de guerra larvada. Noutros lugares, os guardas do colonialismo multiplicam as declarações lenitivas. Ora, o observador descortina perfeitamente sob essas afirmações tranquilas uma intensa ansiedade e um terror da cólera popular.

A guerra da Argélia abalou profundamente o equilíbrio colonial na África. Não há em África um único território ocupado cujas perspectivas de futuro não tenham sido modificadas pela guerra da Argélia. O povo argelino está consciente da importância do combate em que está envolvido. Desde 1954 que a sua palavra de ordem é a libertação nacional da Argélia e a libertação do continente africano. As críticas fáceis periodicamente feitas à FLN pela sua recusa rígida de aceitar etapas na descolonização não têm suficientemente em conta as dimensões originalmente africanas da luta nacional argelina.

O colonialismo francês tem de morrer

Nestas condições, o apelo ao general De Gaulle foi a última tentativa do colonialismo francês. Viu-se que o general De Gaulle apenas pôde tirar as consequências de um movimento que o ultrapassa. A nova Constituição, nas suas considerações sobre a comunidade, deixa ainda um lugar de eleição à metrópole, mas admite o indispensável reconhecimento de Estados autônomos. A criação da República Malgaxe é a primeira manifestação desta reforma gaullista.

Os meios colonialistas que tinham depositado a sua confiança na intercessão do general providencial chegam a perguntar-se hoje se não terão sido enganados no negócio. Por não tirarem as conclusões de uma exigência irreversível que, se não fosse satisfeita, poria a própria França em risco de ser devorada, os colonialistas franceses têm tendência a considerar De Gaulle como um traidor ou um leiloeiro. Verdade se diga, o general salva mais uma vez os interesses colonialistas ao dispor uma comunidade que, desigual, organizada em proveito exclusivo de uma metrópole, mantêm intactas importantes estruturas coloniais.

Com a constituição de Estados autônomos, o colonialismo francês fica enfraquecido. Mas sem a intervenção do general De Gaulle teria sido a destruição do Império a muito curto prazo. Aparentemente traidor dos seus mandatos, o general De Gaulle é de fato o salvador momentâneo de uma certa realidade colonial.

Publicado no El Moudjahid, n.º 31, de 1 de Novembro de 1958.

Escrito por Frantz Fanon

Nota dos editores: nem todas as posições expressas neste texto condizem necessariamente e/ou integralmente com a linha política de nosso site ou da União Reconstrução Comunista.

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